Esta é uma tradução da entrevista feita por Meritxell Freixas, originalmente publicada em 06.12.2018 no site El Desconcierto. Disponível em espanhol em: https://www.eldesconcierto.cl/internacional/2018/12/06/brigitte-vasallo-escritora-y-activista-lgbti-el-poliamor-neoliberal-nos-esta-convirtiendo-en-individuos-aislados-que-vamos-cada-uno-a-su-bola.html
A feminsta espanhola destrincha as implicações de praticar relações não-monogâmicas como forma de resistência política. Teoriza sobre a possibilidade de abrir o “desejo monogâmico” e critica o sistema hierárquico do casal, baseado no amor Disney e que acaba isolandor seus membros da comunidade.
Com mais de 25 anos de experiência em relações não-exclusivas, a escritora e ativista LGBTI espanhola Brigitte Vasallo (Barcelona, 1973), se tornou uma voz pública sobre as relações não-monogâmicas, quando percebeu o surgimento do “poliamor neoliberal” e o “poliamor machista” e aí se convenceu: “não pode ser, temos que nos opor a isso”. Isso foi há vários anos.
Agora acaba de publicar seu último livro “Pensamiento monógamo, terror poliamoroso” (Ed. La Oveja Roja, 2018), em que explica como a monogamia estruturou as relações amorosas e critica as relações que se enfatizam apenas o “acúmulo”.
Lésbica e feminista (porém sem essencialismos contra homens), viveu parte de sua vida no Marrocos, o que influenciou em sua profunda preocupação com “o racismo e o gênero do racismo, mais que o gênero em si mesmo”, como disse em seu blog. Essa experiência também a levou a concentrar-se no feminismo decolonial, o pós-colonial e o feminismo islâmico.
Um de seus principais interesses é o estudo da “alteridade” e de tudo o que dela deriva. Colaborou com vários meios de comunicação na Espanha e leciona no Mestrado em Gênero e Comunicação na Universidade Autônoma de Barcelona (UAB).
Ela responde à chamada do El Desconcierto pelo Skype, ansiosa para falar longamente sobre relacionamentos não-monogâmicos como forma de resistência política. Antes de se sentar e pegar uma caneta e papel, acende um cigarro. Está pronta para responder.
– O que é o poliamor?
– Quando falamos de poliamor e não-monogamia, estamos falando de uma proposta para nos relacionarmos de forma afetivo-sexual com mais de uma pessoa simultaneamente e de forma consensual, com o conhecimento de todas as pessoas. No entanto, meu trabalho é bastante diferente das formas convencionais em que esta concepção está sendo tratada.
– A principal diferença em relação a outras práticas não-monogâmicas que têm sido realizadas na sociedade durante séculos, como a infidelidade, seria então que na poliamor há consentimento?
– É aqui que nos deparamos com um problema. Porque, em princípio, o que os grupos poliamorosos dizem é que a diferença com a infidelidade é que há consentimento. Mas, para mim, o consentimento é uma coisa mais complexa do que podemos dizer. Por exemplo, tradicionalmente, um homem tinha uma esposa e uma amante e foi uma estrutura que funcionou por 40 anos, havia alguma forma de consenso para que funcionasse dessa forma, talvez não concordando totalmente, mas havia alguma forma de isso se manter.
– Então, qual é a abordagem que você está propondo?
– A monogamia não é a prática da exclusividade sexual, mas todo um sistema relacional. E o que eu faço é redefinir este sistema. Até agora, foi-nos dito que o que define a monogamia é a exclusividade sexual, ainda que a história comprove o contrário. Entretanto, na minha opinião, o que define o sistema monogâmico é um sistema que organiza os efeitos de forma hierárquica, colocando no topo da escala um núcleo reprodutivo, um núcleo sexualizado, e depois colocando outros efeitos em segundo lugar. Um exemplo: me perguntam “vocês são apenas amigas”, mas nunca me perguntam “vocês são apenas namoradas” porque isso só indica que no topo da escala está ser um casal, em seguida ser amiga, depois ser um colega de trabalho, depois ser um conhecido, e assim por diante. É uma hierarquia. Outro exemplo: Qual é a diferença entre esposa e amante? O reconhecimento social da relação. Há uma relação que é socialmente aceita e tem os direitos, e há outra que todos sabem que existe, mas não é a relação legítima, que, além do mais, também não dará filhos legítimos. O fato de haver várias pessoas envolvidas em um relacionamento sempre aconteceu, o que estamos tentando fazer com essas outras formas de relacionamento é que todas elas sejam reconhecidas como um relacionamento legítimo. E o que proponho como ruptura radical em relação ao sistema monogâmico é romper essa hierarquia: que o casal não seja aquele núcleo que o isola. O que mais me preocupa é o isolamento.
– Quais são as consequências desta hierarquia?
– Como o casal tem que ser o núcleo, ele gera rivalidade feminina, quase inconscientemente, porque você tem que proteger este núcleo que é constantemente ameaçado pelo outro, um outro em abstrato. Este isolamento também significa que se você não está em um casal, você está sozinha, mesmo tendo muitas amigas. Precisamente, as amigas ou o ambiente que podem colocar olhos críticos no relacionamento, por outro lado, deixam de ter o valor que deveriam ter. E isto, quando o relacionamos, por exemplo, com femicídios, me parece ser preocupante.
– Em que sentido?
– Além de olhar para o sistema patriarcal, temos que pensar sobre as formas de amar. Os femicídios são baseados acima de tudo em um sistema amoroso, eles se relacionam com isso. Uma das questões que eu acho que tem a ver com o sistema e o pensamento monogâmico é a maneira como concebemos o amor romântico, ou melhor, o amor Disney, porque quando dizemos “romântico” nos perdemos em outras considerações. Para mim, trazer o café da manhã na cama, por exemplo, é um ato de amor. O amor Disney funciona através de todo um sistema de apego emocional. Todo aquele cortejo inicial, tudo aquilo que chamamos de apaixonamento é um sistema de dependência tóxica de outra pessoa. Se vai bem, vai bem, mas se vai médio ou mal e começamos com a dinâmica de maus tratos para com a outra pessoa, não somente ficamos presas – é por isso que as pessoas não podem sair dessa dinâmica de maus tratos – mas também as pessoas ao redor que poderiam observar são deixadas para trás ou consideradas como relações menos válidas porque a única coisa que realmente tem valor neste sistema hierárquico é o casal […]. Feminicídios, violência dentro do casal, fronteiras (porque elas estão relacionadas a estas formas de organização no mundo) devem ser respondidas com novas práticas emocionais. Assim como é assustador quando uma nova colega aparece no escritório para ver se ela vai importunar seu parceiro, também é assustador quando as pessoas migram para ver se elas vão importunar nossa identidade nacional.
– Essa relação pode ser redirecionada para que não gere uma situação de dependência?
– Assim como abrimos o sistema sexo-gênero binário (e monogâmico), temos que fazer o mesmo com o desejo monogâmico. Proponho um esquema para abri-lo: começa com o desejo, o segundo passo é a reciprocidade do desejo, o terceiro passo a concretização desta reciprocidade, o quarto passo a identidade comum e o quinto a ruptura, que nunca está incluída no desejo. Nunca se diz que a relação vai terminar. Acreditamos que todos os amores são eternos, mesmo que a vida nos mostre constantemente que não são, e não estamos nada preparados para que não o sejam. Voltando aos passos: se abrirmos o leque, veremos o que escolhemos fazer e o que nos é dado pelo sistema, quais são as violências que estão incluídas em cada uma destas etapas. Por exemplo, sentir o desejo, por si só, é bonito. Entretanto, no mundo monogâmico em que vivemos, já existe uma ansiedade que deve ser retribuída, como se o desejo em si precisasse de uma resposta. Quando há reciprocidade, ou não podemos fazer nada porque estamos em um regime relacional fechado e há frustração, dor em relação ao parceiro atual, etc., ou se você está em um regime aberto, você tem que fazer algo a respeito. Não achamos que podemos não fazer nada e ir para casa e ficar nas nuvens. Quando o desejo é concretizado com uma relação sexual ou com uma aproximação, imediatamente a identidade aparece e vocês se tornam um casal (não estão em um casal, são um casal). É aí que começa a identidade conjunta, que depois leva muito trabalho para ser desmontada, porque significa passar de um nós para uma autonomia do outro, para que eu possa voltar a ser eu mesma. Essa é a catástrofe das rupturas: você tem que transformar o outro em inimigo.
O amor Disney não é natural.
– Seguindo sua teoria, poderia uma relação poliamorosa se concentrar em viver o desejo com outras pessoas livre e plenamente, sem atingir o estágio de identidade (como um casal)?
– O desejo de viver livremente deve ser parte de uma relação saudável. Viver o desejo livremente implica em senti-lo, não necessariamente em realizá-lo. Devemos ser capazes de sentir desejo e não ter que ser uma traição. Desejar outra pessoa significa que você está vivo, isso é tudo. Depois há o que fazer com esse desejo […] Por exemplo, entre as lésbicas é complicado porque nosso desejo é tão criminalizado que, para justificá-lo, temos que colocar uma tremenda carga romântica sobre ele. Entre as feministas também é complicado porque internalizamos a questão da objetificação [do corpo] de tal forma que entendemos que o desejo sexual por outra pessoa as está objetificando. E não é: você pode ter uma foda em um banheiro com uma pessoa e não ser objetificação e nem carência de cuidados. Você pode ter um relacionamento de 30 anos com alguém que o está objetificando e negligenciando. Depende de como é feito.
– Sua teoria sobre as hierarquias relacionais e o poliamor é uma leitura política?
– A política de procurar rachaduras no sistema monogâmico tem a ver com hierarquia no sentido de que, embora você não conheça sua vizinha e não tenha nenhuma ligação com ela, você bate à porta dela para ver como ela está. Trata-se de parar de pensar que você tem que fazer isso somente com alguém com quem você tem uma ligação afetivo-sexual, ou com quem você tem uma ligação de amizade ou família. É o entendimento de que estamos vivendo em comunidade e o que o sistema monogâmico faz é fechar a comunidade ao núcleo reprodutivo. O que o poliamor neoliberal está fazendo é garantir que nem mesmo este núcleo possa resistir e que nos tornemos indivíduos isolados, cada um seguindo nosso próprio caminho.
– É uma defesa do cuidado visto de todas as perspectivas e em todas as direções.
– Sim, esta me parece ser a chave. Não com quantas pessoas você tem relações afetivo-sexuais simultaneamente. Na verdade, o erro básico de como estamos abordando a questão do poliamor vem do fato de não estarmos entendendo o que é a monogamia e estarmos colocando a questão da exclusividade no centro e, portanto, estamos reduzindo tudo à quantidade. Este é um produto do capitalismo neoliberal. Não é a quantidade, é a dinâmica, é o caminho. Isso é o que vai romper o sistema monogâmico, se quisermos rompê-lo. Tudo o resto é fazer uma monogamia simultânea e continuar alimentando a mesma coisa: amor Disney, mas em vez de um, três.
– Como na série “Wonderlust” da Netflix? Trata-se de um casamento onde o poliamor tem inicialmente um efeito de união, mas depois há um outro lado do que ele faz ao casal.
– Eu não vi a série, mas pelo que você diz há algumas coisas interessantes. Acreditar que a abertura de uma relação pode reavivá-la é voltar à questão do inimigo externo. Nada une mais a identidade de um [casal] do que ter um amigo externo. Outro ponto importante: tentar construir relações de longo prazo com base no desejo cai por seu próprio peso, porque um dia esta base se moverá. Além disso, você tem que estar ciente de que outras pessoas não são vibradores e tem que ser clara sobre as expectativas que você está gerando na outra pessoa e em você mesmo.
– Outro tópico relacionado ao poliamor é que ele está muito associada aos coletivos de diversidade sexual e menos ao mundo heteronormativo.
– Há uma questão de poliamor mainstream que foi instalada em comunidades heterossexuais, que têm cerca de 40 anos, classe média, branca… onde acontecem desastres, como em um casal de vida inteira onde ele tem amantes muito mais jovens e ela prepara o jantar para todos. Isto está acontecendo. Ou poliamor como espaço de trânsito para um novo casal monogâmico. Existe um poliamor heteronormativo, mas aqueles de nós que estão tendo práticas que vão no sentido da ruptura da verdadeira monogamia são as comunidades minoritárias por razões muito práticas, porque somos comunidades muito pequenas que não podem arcar com certos desastres.
– Parece complexo entrar nestas lógicas que exigem tanta empatia com o outro e tanto cuidado, quando não recebemos nenhum tipo de educação emocional, nem são encorajados valores tão básicos como a cooperação ou a não competição. O poliamor não acaba sendo pouco transversal? Quero dizer que talvez apenas aqueles que tiveram acesso a certos treinamentos, talvez fora dos espaços convencionais, possam administrar melhor estes parâmetros.
– Sobre a ideia de educação emocional, se tivéssemos apenas uma educação no amor, se nos fosse ensinada a história do pensamento amoroso nas escolas, seria uma história diferente. Pensamos que o amor Disney é uma coisa natural e não é, ele está claramente situado no norte da Europa, no século XIX, o século do nacionalismo, da segunda expansão colonial européia. […] O amor não funciona da mesma maneira em todas as partes do mundo ou em todos os tempos, e se eles pudessem nos explicar isso, seria um grande ponto.
Quanto a ser apenas para uma elite, eu digo não. As elites podem sobreviver por si mesmas. As elites podem sobreviver por conta própria. Eu, por outro lado, preciso de cooperação para sobreviver. Por exemplo, como não tenho família porque, como pessoa queer, fui expulsa de minha família, não posso permitir que meus parceiros se tornem meus inimigos porque eles são minha rede afetiva. Portanto, nas comunidades minoritárias, temos mais ferramentas. Se este for um movimento político, será entre aqueles de nós que não têm outros caminhos e entre aqueles que realmente precisam de um mundo diferente.
Um movimento que pode transformar a forma de olhar o mundo
– Você comentou que não é uma prática nova. De onde vem o poliamor?
– Estudei o momento histórico em que a prática monogâmica se fixou, e isto durante a era colonial. Antes disso, havia muitas formas de vida, também na Europa, que não envolviam exclusividade relacional. Na verdade, levou muitos séculos para estabelecer o casamento; foi somente no século XIII que ele se tornou um dogma cristão. Toda a questão da caça às bruxas se baseia nisto, em práticas sexuais dissidentes. Nem era cristianismo, o que na Europa é muito falado. O que aconteceu é que a Igreja Católica com a Inquisição dizimou todas as outras formas cristãs e elas se tornaram heréticas. Todas essas formas de relacionamento onde havia sexo litúrgico, sexo não reprodutivo, práticas não heterossexuais foram queimadas na fogueira e essas mesmas formas de relacionamento foram implantadas em outros territórios através de processos coloniais.
– Foi o padrão colonizador que foi levado para a África e para a América Latina?
– Foi transferida para o mundo inteiro, mas precisamente com o Norte da África e com o tema do Islã, coisas interessantes e tremendas estão acontecendo […] Por exemplo, o que eu chamo de islamofobia poliamorosa, porque reivindica a possibilidade de ter vários parceiros a menos que você seja uma família muçulmana […] Esta idéia de que a poligamia é algo que muçulmanos e mórmons fazem porque são mais atrasados, e que nós, pessoas poliamorosas, somos mais legais, é uma idéia racista. Em um mundo não racista, o que nós poliamorosos estaríamos fazendo é ir a essas pessoas que fazem isso há séculos e perguntar-lhes como o fazem e que estratégias têm porque passaram por todos os problemas que vamos passar também.
– Existe uma chance do movimento anti-monogamia se tornar um movimento político?
– Acredito ter uma possibilidade política muito importante. Vi comunidades e modos de vida de pequena escala que são politicamente transformadores. Não se trata necessariamente do número de pessoas com quem você está dormindo e eu acho que é um movimento que pode transformar a maneira como somos e como olhamos para o mundo […] As comunidades poliamorosas aparecem até mesmo nos relatos dos jornais mais direitistas. Isto significa que, desta forma, [o poliamor] não é perigoso. Entretanto, os discursos e práticas que colocam o sistema [monogâmico] em risco são os que não vamos encontrar nestes tipos de jornais, porque são os que são perigosos para eles.
Tradução por: Newton Jr
Revisão: Nana Miranda
Como citar?
FREIXAS, Meritxell. Brigitte Vasallo, escritora y activista LGBTI: El poliamor neoliberal nos está convirtiendo en individuos aislados que vamos cada uno a su bola. El Desconcierto.06 de dez. de 2018. Internacional. Tradução de Newton Jr. NM em Foco, 2021. Disponível em: Acesso em: dia, mês, ano.