A Lei Maria da Penha foi um grande marco para os direitos das mulheres no Brasil. Sancionada em 2006, a Lei 11.340 é a principal legislação brasileira de enfrentamento da violência contra a mulher, criando mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar. É reconhecida internacionalmente por ser uma das melhores legislações de combate à violência de gênero no mundo.
A Lei Maria da Penha classifica os tipos de violência contra a mulher nas categorias violência patrimonial, violência sexual, violência física, violência moral e violência psicológica. Dar nome e especificar as dinâmicas de cada uma delas é importante porque torna nítidas essas agressões que na maioria das vezes partem de maridos, companheiros e pessoas amadas pela vítima, causando confusão e dificuldade de reconhecer a violência.
Mais recente ainda, porém não menos importante, é a Lei do Feminicídio, sancionada em 2015. O que hoje chamamos de feminicídio (assassinato envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação à condição de mulher da vítima), até pouco tempo atrás era tratado como crime passional (motivado por paixão ou grande emoção). A Lei 13.104 tornou o feminicídio um homicídio qualificado com as penas mais altas (de 12 a 30 anos), enquanto a alegação de homicídio passional pode reduzir a pena sob o pretexto de que o crime é cometido sob domínio de “fortes emoções”.
Os dados sobre feminicídio no Brasil ainda são recentes e limitados, mas são assustadores. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021:
– a maioria dos feminicídios cometidos são considerados feminicídios íntimos: significa que foram praticados pelo parceiro íntimo da vítima, companheiro ou ex-companheiro.
– 55,1% dos feminicídios são realizados com arma branca como facas de cozinha, tesouras, canivetes e pedaços de madeira – como resultado extremo de uma série de outras violências domésticas praticadas anteriormente. O risco de desfechos violentos aumenta ainda mais quando os agressores têm acesso a armas de fogo. A maioria dos assassinatos são cometidos dentro da casa da vítima.
É excelente que hoje tenhamos os aparatos jurídicos para coibir e responsabilizar os agentes da violência contra a mulher, mas essas são ferramentas que dizem respeito apenas às consequências e resultados de uma relação que é estruturalmente desigual. O patriarcado é uma das bases de sustentação da sociedade capitalista porque determina papéis de gênero e o lugar que as pessoas vão ocupar no funcionamento desse sistema.
É muito triste ter que concluir isso, mas os maridos, namorados e companheiros tem matado as mulheres. Fazem isso porque temos uma disposição social que afirma que os homens são superiores e tem poder sobre a vida das mulheres.
E pior que isso, para garantir o funcionamento dessa dinâmica, existe um ordenamento jurídico, religioso e ideológico que blinda os homens e torna as mulheres vulneráveis nas relações afetivas. Esse ordenamento chamamos de estrutura monogâmica.
A monogamia é uma ferramenta de controle e ordenação da sociedade, que se articulada à outros outros dispositivos normativos como a heterossexualidade e a cisgeneridade determinam comportamentos de gênero e sexualidade.
Antes de mais nada vale ressaltar que quando falamos de monogamia falamos especificamente dessa estrutura de controle e ordenação que é imposta, e não da escolha particular de relacionamento afetivo-sexual entre duas pessoas.
A teórica feminista Silvia Federici explica que o contrato de casamento na sociedade capitalista, é antes de tudo um contrato de trabalho. A violência contra a mulher foi essencial para a implantação do capitalismo, e ainda hoje as mulheres são submetidas a um destino de trabalho doméstico e submissão aos homens. Em uma citação famosa, Federici diz: “isso que chamam de amor é trabalho não pago”. Ou seja, por mais que haja um esforço para fazer o casamento parecer um vínculo que se constrói a partir do afeto e do amor verdadeiro, estruturalmente falando esse vínculo é desigual e juridicamente falando garante aos homens um poder sobre a vida das mulheres.
Mesmo que já tenhamos visto progresso em diversos âmbitos, como melhores oportunidades no mercado de trabalho e direito ao divórcio, ainda é nítido que não são os homens que são educados para serem donas de casa e aceitar tudo em nome do amor verdadeiro. Mesmo que na teoria ambas as pessoas envolvidas assinem o contrato de casamento, sabemos bem que na prática as mulheres são infinitamente mais cobradas a manter os acordos e fazer a manutenção do relacionamento do que os homens.
Hoje existem muitos materiais de conscientização, apoio às mulheres e combate à violência e desigualdade de gênero. Mas ao mesmo tempo que ensinamos as mulheres a reconhecer os sinais do relacionamento tóxico, continuamos reproduzindo ideologias que são tóxicas por si só. Tratamos como comportamentos tóxicos isolados, violências e abusos que na verdade são resultado de uma problemática estrutural que é a desigualdade e a supremacia masculina.
Tendo em vista que as mulheres são educadas e vigiadas para cumprir todos os termos de um casamento enquanto os homens podem descumpri-los sem sofrer grandes consequências:
Como podemos efetivamente combater a violência patrimonial se a ideia de casamento é compartilhar todos os bens? Como podemos combater uma violência sexual como o estupro marital, se existe uma ideologia que diz “se você não fizer sexo com seu marido ele procura outra”? Como podemos efetivamente combater a violência moral e psicológica se as mulheres são constantemente desacreditadas quando denunciam violência doméstica? Por mais que tenhamos uma legislação que nos proteja, esse tipo de discurso é muito comum e dificulta o entendimento das situações de violência.
Não podemos continuar ensinando meninas a serem passivas e depois querer delas que saibam ser assertivas e se desvencilhar de relacionamentos afetivos violentos.
É importante termos consciência dos atravessamentos estruturais para não cairmos na armadilha de responsabilizar as mulheres individualmente pela violência que sofrem. O relacionamento abusivo, a violência doméstica e o triste aumento dos casos de feminicídio não são resultado de escolhas ou comportamentos particulares, mas sim de um sistema que ensina mulheres a serem vulneráveis e dependentes de homens que têm o aparato do Estado garantindo o direito de serem violentos. A violência contra a mulher é um problema coletivo e sustenta a sociedade capitalista.
Referências:
Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2021. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/>
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. 2004. Disponível em: < http://coletivosycorax.org/wp-content/uploads/2019/09/CALIBA_E_A_BRUXA_WEB-1.pdf>
LIMA JR, N. S. Até que a morte os separe. NM em Foco. 2022. Disponível em: <https://naomonoemfoco.com.br/ate-que-a-morte-os-separe.>
MIRANDA, R. NM em Foco. 2020. Qual o lugar da mulher na monogamia? Disponível em: <https://naomonoemfoco.com.br/qual-o-lugar-da-mulher-na-monogamia/>
Santos, A. C. dos, Farias, D. T. M., Pereira, R. F. dos S., & Barros, A. de. (2014). A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E O MITO DO AMOR ROMÂNTICO. Caderno De Graduação – Ciências Humanas E Sociais – UNIT – ALAGOAS, 105–120. Disponível em: <https://periodicos.set.edu.br/fitshumanas/article/download/1810/1065/0>
SILVA, Eva Josiane Paes da. O feminicídio e sua relação com o homicídio passional: Um breve estudo da Lei 13.104/15. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 09, Vol. 04, pp. 05-17. Setembro de 2020. Disponível em: <https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/homicidio-passional#4-CRIME-PASSIONAL-VERSUS-FEMINICIDIO>
Texto por: Thais Carvalho
Como citar?
CARVALHO, T. O que a estrutura monogâmica tem a ver com a violência contra a mulher? NM em Foco. 2022. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/o-que-a-estrutura-monogamica-tem-a-ver-com-a-violencia-contra-a-mulher/. Acesso em: dia, mês, ano.