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Monogamia é coisa de branco

Reflexões sobre o processo histórico da construção da monogamia, da família nuclear e da relação com raça, gênero e classe

A afirmação pode gerar estranheza a quem acredita no contrário, que relações não-monogâmicas é que são coisa de branco. É por conta disso que nos preocupamos em fazer esse texto. Mais do que coisa de branco, monogamia é coisa do dominador, do opressor. Vamos procurar através de uma análise histórica falar desse processo de imposição do modelo monogâmico no contexto brasileiro.

A coletividade está presente na vida humana desde muito tempo. Viver em bandos é o que nos ajudou a potencializar as forças individuais e superar adversidades da natureza. Com o surgimento de uma nova organização social e o advento do trabalho, as primeiras sociedades mantiveram muito desse aspecto de coletividade, pois a colaboração e a união eram fundamentais para a sobrevivência neste período. A criação dos filhos, por exemplo, não podia ficar restrita a “um pai” ou “uma mãe”, já que a ausência de um dos indivíduos do grupo poderia implicar na perda do esforço já gasto na criação dessas crianças. Sendo assim, a responsabilidade da criação era coletiva, sem haver a figura de “pai” e “mãe” como conhecemos hoje.

Com o surgimento da agricultura e da pecuária, os indivíduos passaram a produzir mais do que o necessário para sobreviver. A articulação desse trabalho excedente com a carência (isto é, situação em que a produção não suficiente para todos) tornou possível a exploração do homem pelo homem. A conjugação dessas duas determinações históricas tem como resultado a origem de uma sociedade de classes onde a parte majoritária das pessoas é explorada pela classe minoritária dominante. É nesse contexto que surge a família monogâmica. Para potencializar a capacidade de exploração dos indivíduos, foi essencial quebrar os laços de coletividade e individualizar a necessidade de sobrevivência. O individualismo se apresenta como característica básica da propriedade privada, onde os membros das classes dominantes almejam o crescimento e enriquecimento individual. Com isso, àquela criação coletiva das crianças se torna inviável, uma vez que a responsabilização pelos cuidados com os filhos também se individualizou. Assim, essas atividades sociais são deslocadas do coletivo, passam a ser privadas e a família começa a se organizar de maneira nuclear.

A chegada dos europeus nas Américas e na África foi um marco importante na história, que ocasionou um longo período de exploração e violências. Na concepção deles, era necessário levar cultura e civilização ao nativos tidos como selvagens e irracionais para firmar uma razão a partir da Europa e estabelecer um domínio no qual o eurocentrismo representava a noção de universalidade. As características de coletividade, parentalidade, de trabalho, divisão de tarefa (diferentes dos da sociedade de classes) precisaram ser suprimidas para legitimar a colonização. Apropriação das terras, imposição de trabalhos forçados, dentre outros abusos, serviam à um projeto de colonização de corpo e mente, que além de tudo resultou na disseminação de doenças e da fome, destruindo as bases das organizações sociais locais.

As violências sexuais sofridas por mulheres indígenas e negras nesse contexto produziu um número crescente de “mestiços e “mulatos”, o que ia de encontro com o projeto de pureza de sangue. A Europa utilizava-se do princípio de sangue como um “veículo de pureza da fé” cristã. Para alcançar cargos civis, militares e eclesiásticos, provas de sangue eram exigidos, bem como para casamentos. Por se acreditar que a posição social era determinada principalmente pela origem genealógica, a norma reprodutiva na sociedade colonial era o casamento endogâmico entre pessoas de mesmo status social. Zelando pela garantia da honra social associada à pureza de sangue, as elites coloniais aspiravam casar-se entre si para assegurar a pureza social condicionada ao nascimento legítimo de sua prole. Já nas colônias, esses “mestiços” e “mulatos” em grande número mostraram que o projeto de pureza de sangue como instaurado na Europa não funcionaria da mesma forma aqui, sendo necessárias outras políticas, com o mesmo interesse em outros momentos históricos.

O casamento entre um homem e uma mulher, é o esperado pelo deus cristão e nesse período o político e o religioso eram um, sendo o desejo de deus, o desejo do Estado. Mas essa não era a realidade das escravas que trabalhavam no campo, sempre vigiadas por figuras masculinas, e também em serviços domésticos na Casa Grande, onde se tornavam alvos fáceis da violência sexual dos seus senhores. Através de diversas interpretações de livros considerados sagrados, negros eram vistos como inferiores, animais irracionais. Num contexto de animalização, aos povos colonizados, cabia dentro da estrutura monogâmica, o lugar de estupro e violação. A família nuclear dos colonizadores era a família abençoada pela igreja e protegida pelo Estado. Os filhos nascidos da violência dos colonizadores eram ilegítimos, impuros, e muitas vezes o lugar reservado à eles era também o da escravidão.

O modelo nuclear monogâmico nos foi aplicado de forma compulsória, assim como dogmas morais e religiosos, e foram com o tempo assimilados e passaram a ser o padrão desejado por nós. Como pode uma estrutura de dominação imposta de maneira tão violenta ser considerada o ideal para povos subalternizados? Quais os impactos da imposição dessa estrutura de dominação para a construção da nossa afetividade? E para a construção da nossa autoestima? Refletir sobre não-monogamia com o foco em gênero, raça, sexualidade e classe, perpassa por desmistificar a ideia de que não-monogamia não é pra nós. É justamente o contrário, a monogamia é uma política que nunca nos coube.

Referências

“Abaixo a família monogâmica” — Sérgio Lessa

“O enigma das interseções: classe, “raça”, sexo, sexualidade. A formação dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX” — Verena Stolke

Texto por: Newton Jr, Nana Miranda

Revisão: Simone Bispo

Como citar:

LIMA JR, N. S. MIRANDA, R. Monogamia é coisa de branco. NM em Foco. 2020. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/monogamia-coisa-de-branco. Acesso em: dia, mês, ano.

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