Reflexões anticoloniais
Oi! Você que me lê agora já deve ter ouvido ou até mesmo falado coisas como: “não-monogamia é coisa de gente privilegiada, que não trabalha, a quem sobra tempo, é coisa de quem quer pegar muita gente, eu não sou assim!”. Vamos pensar sobre isso mais detidamente? Este é o meu convite neste texto.
Críticas são fundamentais a qualquer construção de um projeto político, não é diferente quando falamos de não-monogamia. No entanto, é importante diferenciar críticas e preocupações construtivas daquelas objeções falaciosas, que reforçam estigmas. Minha intenção neste texto é contribuir discutindo alguns destes argumentos falaciosos, pois são um impedimento no nosso processo de fortalecimento de autoestima, de saúde mental. Além disso, estes estigmas contra não-monogamia afastam pessoas que, por desconhecerem o debate, acabam adotando o senso comum moralista. Descolonizemos nossas percepções.
1) A não monogamia seria possível para pessoas não hegemônicas?
Esta é uma das questões mais frequentes.
Devolvo a pergunta: a monogamia é uma opção possível e saudável para pessoas não hegemônicas?
Vejam, historicamente, apenas determinados corpos foram tidos com os dignos de serem os “oficiais”, nomeadamente, os brancos, cis, magros. Da mesma forma, houve e há uma marcação de gênero em que é colocado na posição de amante, em quem é escondido, sexualizado. De quem teve/tem direito à herança e quem fica no lugar de “filho bastardo”. O sistema monogâmico se articula com o da propriedade privada e este por sua vez, com todo o racismo estrutural. Ressalto que a base do feminicídio também aciona a ideia de propriedade. A monogamia nunca foi uma opção saudável de relação, especialmente a pessoas subalternas, que sofrem os efeitos mais pesados dela.
A monogamia é compulsória, isto quer dizer que atua como um sistema de verdades prévias, de modo que a quebra destes princípios, por si só, vem a configurar um desrespeito, não sendo comum que se questione a própria legitimidade do combinado. Não é porque um acordo é consensual que necessariamente é ético quando estamos falando em estruturas de poder.
Um dos pontos fortes da não-monogamia, a meu ver, é que ela não tem um modelo prévio e único. Cada relação não-mono constrói suas próprias bases de limites e possibilidades.
Agora, nada deixa uma pessoa branca menos branca, ou uma cis menos cis e assim por diante. Privilégio estrutural não some com desconstrução pessoal, precisamos é de reparação histórica. A não-monogamia não substitui a luta antirracista, nem nenhuma outra, a meu ver. Ela pode ser, no entanto, uma aliada a elas.
Desconfiemos de toda promessa de desconstrução que se furte a enfrentar os sistemas de opressão. Penso uma não-monogamia anticolonial porque minha luta é anticolonial e não faria sentido pra mim apostar em construir algo às avessas disso, mas repito: não há ética que venha pronta e abstrata num arranjo, ética se faz na prática relacional.
2. Não-monogamia e o tempo?
“Eu não teria tempo nem pra 1, imagina mais”. Vejam, esse tipo de pensamento aciona uma ideia de que não-monogamia seria algo como monogamia x2 ou x3. A forma como o amor romântico costuma centralizar a vida das pessoas monogâmicas faz com que se espantem ao imaginar que não poderiam “acrescentar” mais pessoas por conta do escasso tempo.
Há uma série de falácias nesse argumento.
A falta de tempo no modo de vida capitalista se dá justamente pela centralização de várias tarefas a serem realizadas por uma única pessoa (em que pesem ainda mais o racismo, misoginia, transfobia). Quando há partilha e colaboração com mais pessoas a tendência é que sobre mais tempo, não que falte. Daí a importância de pensar uma não-monogamia anticolonial.
É triste que namoro seja sinônimo, especialmente pra quem se relaciona com boy cis hétero, de cansaço e desgaste, de modo que à possibilidade de ter mais de uma relação desse tipo, as pessoas sintam tanta preocupação com o trabalho que terão. Cabe se questionar o que essa associação entre namoro e estresse emocional aponta sobre a monogamia.
O trabalho emocional, quando feito de modo recíproco e não exploratório, alivia os fardos da vida. É através dele que crescemos como pessoas. Acolher a raiz dos nossos incômodos e ter companhia saudável pra isso é um dos presentes mais lindos que se pode ter.
No entanto, ainda que a não-monogamia favoreça esse movimento, cabe pontuar que ética não vem pronta em arranjo nenhum, ela se constrói nas práticas das pessoas.
3) “Mas relações não-mono perpetuam a lógica do descarte, do descompromisso, da superficialidade”
Relações descartáveis, descompromisso, superficialidade — estes são atributos comuns que ouvimos de relações não-monogâmicas.
Toda relação colonial faz uma edição moral: atribui ao outro aquilo de si que acha ruim e acredita ser próprio de si aquilo que julga como bom.
É esta receita que pessoas mono usam quando acionam aqueles atributos.
Vejam, a monogamia não se faz apenas quando alguém está em namoro, ela orienta também a solteirice. Convenientemente, muitas pessoas que se relacionam monogamicamente se esquecem que boa parte da sociabilidade jovem do nosso tempo, em contextos como festas, baladas, aplicativos de pegação e afins, operam numa lógica que, pros critérios subentendidos, seria facilmente enquadrada como a de vínculos descartáveis, descompromissados, sem responsabilidade afetiva. Se é algo que perpassa todo uma geração, porque associar isto tão imediatamente à não-monogamia?
A (falsa) oposição de valor e hierarquia entre sexo e amor é o que sustenta certas racionalidades monogâmicas e cria o presente do romantismo, a la bíblia: deixei de fazer o que fazia antes (sexo com várias pessoas, baladas, etc) pra agora amar apenas você. Pecador redimido. A renúncia dos “benefícios” da vida de solteiro/a é fundamental pra criação da narrativa de renúncia deste “amor de verdade” que se inicia.
Uma das propostas da não-monogamia é justamente questionar a hierarquia entre amor x sexo, liberdade x respeito e outras tantas que o amor romântico traz. Para manter a ilusão, é comum que uma série de vínculos sejam narrados como “só” algo, como “algo que não significou nada”, para que rebaixando outros vínculos, o ego monogâmico possa se tranquilizar. Ética relacional é sobre construirmos com saúde todos os vínculos que temos com o mundo.
4) Hipersexualização de pessoas não monogâmicas e moralismo cristão: de onde vem suas projeções?
Uma das objeções que escuto de pessoas monogâmicas é: “mas eu só tenho vontade de ficar com 1 pessoa mesmo”, no subtexto dizendo: “não sou como você que precisa ficar com mais gente”. Há vários equívocos aí.
1. Não-monogamia não é sobre quantidade de pessoas que se pega. É sobre não se autorizar a legislar a sexualidade/afetiva de outra pessoa.
2. No pensamento moralista cristão, o valor da virtude está em conter o impulso da carne, marcadamente, os sexuais. Um bom cristão é aquele que é controlador de si. Como recalca sua subjetividade, muito frequentemente ele passa a projetar e se ressentir de outras pessoas que, na avaliação dele, vivem no “caminho fácil”, que se deixam guiar pelos prazeres (que seriam algo perigosíssimo! rs). Para evitar ser julgado, o cristão monogâmico passa a ocultar suas “derrapadas”, que de exceção não têm nada (tem pesquisas que apontam mais de 70% das pessoas monogâmicas já tendo traído no Brasil, deem um Google).
3. Se realmente ambas pessoas não sentem vontade de ficar com outras, porque então a necessidade de um contrato/arranjo monogâmico? No paralelo bíblico, o cristão precisa que algo seja nomeado como pecado e que este pecado seja punido para que minimamente se oriente nesta ética. A meu ver, no entanto, a ética radical é quando vc não precisa de uma sansão como impeditiva da ação e sim quando vc age corretamente, não porque tem medo de ser punido e sim porque aquilo é o certo.
4. Mas, pra além disso, cabe lembrar que o exercício livre da própria sexualidade/afetividade (deveria ser) um direito inalienável! O que fazemos com nosso próprio corpo não deveria ser sinônimo de falta de responsabilidade com terceiros, com desrespeito, com falta de ética, etc. Repetindo, nada disso deveria ser sobre aval de terceiros! A monogamia coloca uma cortina de fumaça sobre o que realmente é construção de ética e cuidado numa relação. Companheirismo, apoio, solidariedade, parceria, isso sim deveria ser critério para a saúde de uma relação. Respeito alheio não deveria ser medido com o jeito como a gente gere nosso próprio corpo-casa-território.
Texto por: Geni Núñez
Revisão: Newton Jr
Como citar:
NÚÑEZ, G. Não-monogamia e as opressões estruturais. NM em Foco. 2020. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/nao-monogamia-e-as-opressoes-estruturais. Acesso em: dia, mês, ano.