Entrevista com Gustavo Azevedo, Gabrielle Dal Molin, Anjaína Santos e Laís Fraga
Em uma sociedade que tem o sistema monogâmico como estrutura basilar, vivenciar a Não-monogamia Política não como um modelo relacional, mas como um orientador ético e político para a construção das nossas relações exige resiliência e coragem. Validar um pensamento coletivo e emancipatório da não-monogamia diante da imposição social, jurídica e religiosa/cristã da monogamia revela obstáculos e revezes especialmente para pessoas com filhos.
Os desafios da parentalidade para pessoas não-monogâmicas se apresentam no cotidiano, desde no diálogo sobre o assunto com os filhos, na busca por direitos, nas relações com escola e parentes, no convívio com a rede de afetos e na educação compartilhada das crianças. Repensar a manutenção do trabalho doméstico não remunerado das mulheres, a opressão de gênero e a organização da sociedade em famílias nucleares são outros temas que perpassam a tentativa de rompimento com a lógica monogâmica.
Para quem tem filhos e escolhe a Não-monogamia Política como projeto de vida, os entraves são muitos, sem dúvidas. Mas a busca pela construção artesanal das relações, como nos traz o pensamento ancestral compartilhado poeticamente pela pensadora indígena Geni Núñez, também gera novas formas criativas de se organizar e de multiplicar as possibilidades de afeto e autonomia para adultos e crianças.
Nessa entrevista vamos compartilhar histórias de pessoas que não fizeram da parentalidade um impeditivo para vivenciar a Não-monogamia Política. Em comum, elas têm o desejo de protagonizar suas relações a partir de um olhar de muita autonomia e afeto.
Simplificando a não-monogamia
Como abordar a não-monogamia com os filhos é uma preocupação comum entre pais e mães. Na casa do Gustavo Azevedo, 32 anos, a temática sempre foi conversada com as duas filhas, de 9 e 7 anos, e com o sobrinho, de 6 anos, de maneira natural e cotidiana. “Sempre falamos abertamente do assunto, que nunca foi visto como algo estranho. É normal que se partilhe afeto e também que se queira estar junto de quem partilha, e as crianças desenvolvem seus próprios vínculos com essas pessoas que passam a fazer parte do nosso dia a dia, às vezes inclusive como novos cuidadores”, explica Gustavo, que atualmente coabita juntamente com outros quatro adultos não-monogâmicos: Juliana é companheira afetiva-sexual dele e de Kevem, irmã de Maíra, que é companheira afetivo-sexual de Thiago.
A criação das três crianças é compartilhada pelo grupo. Cada um possui uma disponibilidade de tempo e intervalos diferentes para estar com elas, acompanhando e educando. Para Gustavo, os desafios da parentalidade ficam consideravelmente mais leves quando o cuidado é coletivo, especialmente em tempos de isolamento social. “Isso faz com que haja menos lacunas e uma distribuição que permita que as demandas das crianças sejam atendidas minimizando o acúmulo de carga nas pessoas responsáveis. Assim conseguimos nos dividir entre o home office, as tarefas da casa e as demandas das crianças de uma forma que faça sentido para que todes consigam ter tempo de qualidade e as crianças terem múltiplas referências para crescerem saudáveis”, destaca.
Se em casa o tema não-monogamia é tratado com simplicidade, da porta para a fora, os desafios são maiores. Gustavo ainda não se sente confortável para se posicionar sobre o assunto em qualquer ambiente. Na família, apenas com a mãe. “Evito contato com muitos parentes, pois não temos qualquer alinhamento político ou ético. Também acho pouco produtivo o confronto com quem não é próximo, mas que pode me afetar diretamente”, explica.
Na escola das crianças, Kevem já participa do chat no WhatsApp de uma das turmas e foi apresentado como companheiro de Juliana. Ainda assim, eles têm introduzido essas questões de não-monogamia de maneira discreta. “Aqui em casa as crianças lidam com plena naturalidade sobre a pluralidade de afetos, pois essa é a realidade na qual estão inseridas. Mas sinto receio das violências que podem receber ao falar abertamente sobre o modelo familiar que possuem nos ambientes em que não estivermos por perto”, afirma Gustavo.
A partir da esq.: Kevem, Juliana, Gustavo, Maíra e Thiago, acompanhados das crianças
Essa também é uma preocupação de Gabrielle Dal Molin, que mora com o pai da filha dela, de 2 anos, e que também se relaciona com outra companheira que participa da educação da criança. “Minha filha ainda não frequenta a escola, mas já penso como será, por exemplo, uma representação da família dela contendo mais pessoas do que o ‘convencional’. Ou de que forma ela vai se referir às pessoas com as quais eu e o pai dela nos relacionamos. Sei que teremos que nos posicionar e que precisaremos de uma escola que saiba lidar minimamente com isso”, reconhece.
Apesar de não morarem na mesma casa, a companheira de Gabrielle participa ativamente dos cuidados com a criança desde a gestação. “Ela convive bastante aqui em casa. Por morar comigo, o pai divide mais as responsabilidades, mas ela também participa com cuidados básicos, como banho, alimentação e brincadeiras. Penso que se qualquer um de nós estabelecer novos vínculos daqui para frente precisaria ser com pessoas que estejam dispostas a participar da vida da bebê”, destaca.
Morando em outro estado, longe da família, Gabrielle conta com os dois companheiros como rede de apoio. Poucos parentes sabem da escolha dela pela não-monogamia: “Não é algo que eu tenha aberto muito, porque não senti necessidade ainda. Mas sei que essa necessidade virá conforme minha filha crescer, porque ela vai falar sobre isso e a gente vai ter que estar com tudo claro”, pondera.
Gabrielle é professora e, no trabalho, a lógica é a mesma. Ela se posiciona somente com as pessoas com as quais se identifica e tem amizade. Por lecionar Sociologia e História, o tema já até foi abordado em sala de aula, mas de forma discreta, sem aprofundamento: “Acredito que o desafio já se inicie aí, com o fato de que a gente tem que ficar medindo o quê da nossa existência a gente deve ou não falar”.
Não-monogamia e as repercussões jurídicas
O reconhecimento legal de famílias não monogâmicas é outro desafio a ser enfrentado. No Brasil, o acesso a direitos básicos ainda é restrito às relações monogâmicas. Por manter uma união estável com Gustavo, Juliana não tem direito a nenhum benefício vinculado ao Kevem, por exemplo, sob pena de estar incorrendo em crime com previsão de 2 a 6 anos de prisão.
Apesar de trabalhar com tecnologia, as chances de Gustavo avançar na carreira fora do país também são limitadas. Caso fosse aprovado em um processo seletivo para trabalhar fora, ele precisaria ir sozinho ou acompanhado apenas de uma pessoa adulta com a qual estivesse casado e das crianças. “Com esse dilema posto, inviabilizando decisões coletivas e forçando escolhas exclusivas, acaba sendo mais saudável e viável ficar, até pela presença de todos esses adultos no crescimento das crianças”, relata Gustavo.
A monogamia, de fato, molda a forma como a sociedade se organiza, nos mínimos detalhes, e isso traz algumas dificuldades cotidianas práticas para quem não segue o modelo da família nuclear monogâmica. Um exemplo destacado por Gustavo é a dificuldade em encontrar apartamentos na cidade de São Paulo com cômodos bem distribuídos para que múltiplas pessoas vivam coletivamente de forma mais horizontalizada. “A maioria dos apartamentos com quatro quartos ou mais possuem uma nítida hierarquia entre os cômodos. Os espaços de convivência não são priorizados, geralmente um dos quartos é muito grande, desproporcionalmente aos outros, às vezes até com suíte, e outros são bem menores (teoricamente planejados para crianças), e de vez em quando possuem um ‘quarto’ inabitável (aquele resquício do Brasil colonial chamado ‘quarto de serviço’), que às vezes nem janela tem”, observa.
Anjaína Santos, de 41 anos, lembra que as dificuldades perpassam até mesmo na firmação de um contrato de aluguel, uma vez que o mercado imobiliário ainda apresenta uma tímida abertura para aceitar uma composição de renda de mais de dois adultos.
São limitações como essa que motivam Anjaína a questionar o sistema e se posicionar politicamente. “Eu não posso estender meus benefícios decorrentes de estar empregada aos meus namorades. Sobre herança, apesar de eu ter convívio e afeto por crianças além da minha filha, apenas ela tem direito”, lamenta.
Atualmente, Anjaína mora com o pai e a filha, mas, embora não coabite com a irmã, o cunhado e as três sobrinhas, eles se consideram um só núcleo familiar. Há inclusive um projeto de morarem todos juntos para facilitar a dinâmica que hoje eles têm como rede de apoio no cuidado com as crianças e com a rotina doméstica, de trabalho e estudo. “Vejo a presença da não-monogamia como conceito norteador da forma como eu, minha irmã e meu cunhado formamos um núcleo colaborativo e de apoio mútuo, inclusive na educação das crianças”, reforça.
Anjaína (à esq.) com a irmã, o cunhado, a filha e sobrinhas
Anjaína lembra, no entanto, que nem tudo são flores. A dificuldade de integrar o pai, de 70 anos, nesta dinâmica familiar que as duas filhas estão propondo ainda é grande. “Ele não é uma pessoa receptiva ao novo e é muito agressivo no embate, o que torna qualquer diálogo quase impossível. Por ter ressignificado o conceito de família a partir da lógica não monogâmica, eu tenho um pensamento que vai de encontro ao pensamento conservador que ele quer a qualquer custo fazer triunfar”, explica.
Fora do núcleo familiar, Anjaína mantém dois relacionamentos afetivo-sexual. As duas relações são recentes e tiveram início durante a pandemia. Por isso, a aproximação dos companheiros com a filha dela é lenta, o que Anjaína não lamenta: “Eu acho benéfico em se tratando de crianças. Minha filha sentiu muito o fim do meu casamento e de um outro relacionamento meu, o que me faz tomar mais cuidado com essa aproximação agora. As crianças criam vínculos independentes dos nossos sentimentos e precisamos estar atentos a isso”, defende.
Amigos, familiares, colegas de trabalho e faculdade sabem do posicionamento não-monogâmico de Anjaína, o que, segundo ela, trouxe consequências caras. “Meu casamento acabou, meu relacionamento com meu pai beira o impossível, houve afastamento de amigos e pessoas queridas para mim. E por outro lado, ter um posicionamento bem definido também trouxe relações mais harmônicas, tanto novas, quanto as da vida inteira. Minha irmã e meu cunhado se aproximaram mais de mim, amores e amigos também”, destaca.
A partir da esq: Anjaína com o namorado, a namorada e a filha
Não-monogamia, autonomia e rede de afetos
Entre as dores e delícias de tentar construir uma realidade fora das caixas que a sociedade nos impõe, Laís Fraga, de 31 anos, acredita que foi a partir do nascimento da filha dela e do peso da responsabilidade da criação de uma vida, que ela se propôs a entender mais sobre o mundo, a vida e as relações: “Em busca de garantir à minha filha um crescimento digno entendi que a autonomia era um valor”, explica.
Para ela, maternar abriu caminhos que foram libertadores. “Foi buscando a autonomia dela, que passei a buscar a minha”, conta a nutricionista que se divorciou do pai da filha quando a criança, hoje com 9, tinha 3 anos. Desde então, os dois mantiveram diversas dinâmicas com relação à guarda da filha. “Até a pandemia, eu era a principal responsável por ela e, após o início da pandemia, por ser profissional da linha de frente, a guarda está com o pai. A expectativa é que, em breve, estejamos morando no mesmo condomínio: eu e o pai dela, em apartamentos diferentes (e sem qualquer relação para além da parentalidade em comum). Além de nós, muitas pessoas formam uma rede de cuidados importante: avós, tios, afetos, etc. É até difícil falar disso durante tempos pandêmicos, uma vez que essa rede era mais fluida e orgânica antes disso tudo começar”, conclui.
Parentalidades possíveis: um projeto em construção
Apesar de escolhermos a Não-monogamia Política, seguimos vivendo num mundo estruturado pela monogamia. Com isso temos diversos desafios que se mostram na vida cotidiana. Construímos no agora as alternativas a essa estrutura. Não temos respostas prontas, e cada situação tem suas particularidades. Compartilhar essas vivências práticas nos ajuda a vislumbrar essas possibilidades.
É de conhecimento da maioria que é necessário uma “vila para se criar uma criança”, mas a estrutura monogâmica que nos afasta em núcleos, mantém uma configuração que sobrecarrega os indivíduos nesse processo. Articulamos e propomos um projeto coletivo e emancipatório e pensar as parentalidades é essencial. É um tema que precisa ser mais debatido nos espaços sobre não-monogamia. Se nosso projeto de vida é coletivo, é essencial pensar no cuidado compartilhado e nas possibilidades no agora de se vivenciar tudo isso. Que possamos pensar as parentalidades para além dessa estrutura, tendo como direcionamento a Não-monogamia Política.
Texto por: Camila Freitas
Revisão: Newton Jr.
Como citar?
FREITAS, C. Eu, vocês e as crianças: projetos de parentalidades possíveis a partir da Não-monogamia Política. NM em Foco. 2021. Disponível em: <https://naomonoemfoco.com.br/parentalidades-nao-monogamia>. Acesso em: dia, mês, ano.
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Adorei conhecer um pouquinho dessas vivências! Deu um quentinho no coração, rs. Acho muito válido que os estudos e pesquisas sobre Não Monogamia Política considerem as diversas e distintas vivências e demandas das pessoas que criam /convivem com crianças, pois se já é desafiador ir contra a norma monogâmica, imagine conciliar com a responsabilidade de criar e educar! Parabéns pelo trabalho! Obrigada.