Feminismo NegroTextos

Qual o lugar da mulher na monogamia?

Notas sobre tecnologias de gênero e divisão sexual do trabalho

A agenda feminista de maneira geral se debruça em pensar a opressão e a subordinação social das mulheres, bem como criticar os papéis de gênero e marcadores sociais de diferença que os identificam. Esses marcadores vão produzir um conjunto de efeitos sob corpos, comportamentos, nas relações sociais e nos processos de subjetivação dos sujeitos. O objetivo deste texto é jogar luz sobre uma perspectiva que percebe a monogamia como um dispositivo de reforço desses papéis de gênero.

A noção de gênero não se dá a partir da diferença sexual, mas sim de um complexo de várias tecnologias sexuais produzidas nos corpos. “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.” Essa citação famosa de Simone de Beauvoir expressa que as diferenças entre homem e mulher são socialmente construídas. Gênero é o resultado de uma espécie de maquinaria que produz a partir de discursos e práticas apoiados nas instituições do Estado — como família, igreja, sistemas educacionais e cultura — as categorias de homem e mulher.

O processo de produção capitalista transformou o corpo em uma máquina de trabalho e utilizando-se de uma herança cultural histórica em que mulheres já eram subjugadas, então passaram a ser sujeitadas à reprodução da força de trabalho. Para além de uma concentração de trabalhadores exploráveis e de capital, foi necessário intensificar as diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, em que as hierarquias construídas sobre o gênero, assim como sobre a raça, se tornaram fundamentais para a dominação de classe.

Nessa nova ordem de organização, o lugar da mulher no trabalho organizado foi substituído pela figura de dona de casa de forma que a família foi redefinida como lugar para a produção da força de trabalho (procriação e cuidados com filhos). O ofício doméstico foi desvalorizado e as mulheres tornaram-se bens comuns, uma vez que suas atividades foram definidas como um não trabalho e naturalizadas como disponíveis para todo mundo.

Essa cultura patriarcal reduziu as mulheres à dependência dos homens, visto que no pré-capitalismo, apesar da já existente subordinação das mulheres aos homens, elas tinham acesso às terras e a outros bens comuns. Com o advento do capitalismo, dado que seu trabalho foi definido como recurso natural que estava fora da esfera das relações de mercado, a mulher tornou-se então refém dessa estrutura.

Nesse contexto, levando em consideração as mudanças na configuração de família, ela passa a ser uma importante instituição para a apropriação e para o ocultamento do trabalho das mulheres. A ordem da família burguesa vai ganhando conotações modernas enquanto a mulher carrega esse estigma construído socialmente de que precisa manter-se em casa. Apesar dessa estrutura privilegiar homens proprietários, que são representantes do Estado, o encarregado de disciplinar e supervisionar a esposa e os filhos, essa noção disciplinar pode ser observada também em famílias proletárias, que absorveram a ideologia burguesa. Dentro da família burguesa, a mulher perde seu poder quando é excluída dos negócios familiares e designada a supervisionar os cuidados domésticos. Enquanto na classe alta a propriedade privada que dava ao marido poder sobre sua esposa e seus filhos, a falta de remuneração é que dava aos trabalhadores um poder semelhante sobre suas mulheres.

A divisão sexual do trabalho inserida na divisão sexual da sociedade possui uma evidente articulação entre o trabalho das mulheres de produção e reprodução. Essa política alicerçada na família nuclear monogâmica é um lugar que vai demarcar um conjunto de representações do feminino legitimadas pela explicação biológica com intuito de maximizar a produtividade do capital burguês.

É importante entendermos o papel da monogamia na construção das subjetividades e na perpetuação de papéis que limitam a existência das mulheres. A reinvenção do mito relacional monogâmico e matrimonial na atualidade não suprime o fato de que este é um modelo que foi pensado para intensificar e precarizar o trabalho feminino. O ônus da divisão sexual do trabalho recai sobre a mulher e no caso de mulheres racializadas a jornada de trabalho ainda é maior, uma vez que elas exercem o trabalho de cuidados para si, para suas famílias, para seus homens e para a branquitude. A monogamia em nenhuma dimensão é benéfica para nenhuma mulher e não deveria ser encarada como um ideal político almejável.

REFERÊNCIAS

A tecnologia de gênero. Teresa de Lauretis

Calibã e a Bruxa. Silvia Federici

O tráfico de mulheres: Notas sobre a “Economia Política” do Sexo. Gayle Rubin

Texto por: Nana Miranda

Revisão: Newton Jr, Simone Bispo

Como citar?

MIRANDA, R. Qual o lugar da mulher na monogamia? NM em Foco. 2020. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/qual-o-lugar-da-mulher-na-monogamia. Acesso em: dia, mês, ano.

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