O título do texto é uma brincadeira com a célebre frase de abertura do Manifesto Comunista, escrito por Marx e Engels. Ao passo que os debates sobre as não-monogamias tem se popularizado nas redes, uma reação às proposições direcionadas por um pensamento radical, tem sido evocar um pânico moral sobre uma suposta tentativa de imposição desses ideais. Vamos conversar sobre como esses discursos se assemelham às narrativas de pânico moral articuladas por conservadores e também se assemelham com as narrativas de defesa da monogamia e suas violências.
Cuidado com o fantasma: os usos do pânico moral
A profunda crise política em que vivemos atualmente nesse território revela como a ascensão do conservadorismo coordenado pela direita, deslegitima, através de disputas de sentido, as reivindicações por novas gramáticas morais, equidade e o reconhecimento das diferenças. Um exemplo é o pânico moral evocado na ideia de imposição da “ideologia de gênero”. Se cria um inimigo a ser combatido pelas “pessoas de bem” em prol da defesa da manutenção da ordem patriarcal, heterossexista e conservadora, colocados como “bons costumes” dos “cidadãos de bem”.
Essa cruzada moral se organiza em uma reação às mudanças nas relações de poder. É necessário manter o controle dos homens em relação às mulheres e aos filhos. Defender a autoridade absoluta do pai e a família enquanto instituição indissociável da heterossexualidade. No entanto, a defesa dessa família em abstrato pouco condiz com a realidade demográfica brasileira. As famílias nesse território são diversas e sustentadas por mulheres e comunidades em grande parte das vezes. Isso revela o quanto esses discursos, apesar de ressoarem com muitas pessoas, não dizem respeito à realidade concreta.
A luta contra esses fantasmas, como a ideologia de gênero, serve para angariar a adesão daqueles que visam reverter qualquer avanço em políticas públicas voltadas a pessoas que vivem à margem. Se utilizam da tática de mostrar uma suposta imposição em espaços como as escolas, onde crianças seriam doutrinadas a infringir a “moral e os bons costumes”. Um exemplo é o suposto “kit gay” que teria sido enviado às escolas com esse propósito.
Esses discursos exemplificam como as pessoas beneficiadas pelas relações de poder não querem abrir mão de sua dominação. Consequentemente, vão usar de diversas retóricas, recorrendo ao pânico e medo, para justificar o combate a qualquer coisa que abale radicalmente a conformação dessas relações. Uma dessas estratégias é apontar a suposta imposição dessas ideias por parte dos ditos “radicais”, que querem forçar a adesão a seus pensamentos.
O público e o privado: a defesa da monogamia
Público e privado são conceitos em constante disputa. A definição desses conceitos tem papel central para a teoria liberal. Privado seria uma esfera da vida social onde a interferência às liberdades precisaria ser muito bem justificada. Já o público seria uma esfera social mais acessível. Uma distinção entre vida doméstica e não-doméstica, entre sociedade e o Estado. A divisão sexual do trabalho aponta a dicotomia que se organiza nessas definições.
A vida dos homens é, historicamente, ligada às ocupações da vida pública, econômica e política. Já as mulheres são responsáveis pelas preocupações da vida privada, o trabalho doméstico e reprodutivo. Os direitos políticos e de liberdade defendidos como direitos dos indivíduos, na verdade, se referem aos direitos dos indivíduos masculinos. Essa defesa se baseia na lógica de que não é necessário interferência no controle que os homens exercem sobre os outros membros dessa esfera privada, legitimando o controle e submissão desses indivíduos.
Ao apontar as críticas à monogamia, um dos primeiros argumentos acionados é de que não se deve questionar algo da ordem do privado. Nesse sentido, a monogamia deve ficar longe de qualquer debate público. Quando as violências presentes nas relações de poder dentro da família são destacadas, a defesa dessa instituição enquanto esfera privada é a premissa mais mobilizada. É como se as famílias constituíssem núcleos privados que não impactam e não são impactadas pelo coletivo.
Outro discurso prontamente apresentado na defesa da monogamia é de que grupos estão tentando impor ideais não-monogâmicos. Afinal, sendo uma questão de escolha, cada indivíduo deve ser livre para escolher. Isso coloca como equiparáveis a monogamia e as não-monogamias, como apenas modelos relacionais dentro de um leque de escolhas. Tais discursos ignoram a construção histórica do sistema monogâmico e de como ele se institui para manter a coesão de diversas estruturas de opressão.
O ordenamento jurídico brasileiro adota uma tese monogamista. O Estado utiliza de sua ferramenta de proteção, o direito penal, para tipificar a bigamia (Artigo 235 do código penal). A única opção para se obter os direitos garantidos através do contrato de casamento é a monogamia. A família protegida pelo Estado brasileiro é a monogâmica. Quem detém o poder de imposição, impõe a monogamia. A escolha por ela, nesse cenário, é uma escolha alienada. Ou seja, entre a única opção possível é a monogamia que você escolhe.
Não-monogamias de mercado: não atrapalha meu jabá
Em um vídeo de 2019, intitulado “As ilusões da representatividade: o antirracismo de mercado”, o historiador marxista Jones Manoel aborda como os discursos de antirracismo são cooptados pela lógica consumista de grandes empresas. Para o público essas empresas se apresentam como antirracistas, pela força de engajamento que essas lutas passam a ter junto de uma esquerda liberal que se vê tão ávida pela “representatividade”, e pela “ocupação de diversos espaços”. Enquanto no cotidiano, as mesmas empresas exercem uma superexploração de pessoas negras, inclusive através de trabalho análogo a escravidão. Jones Manoel define esse fenômeno de “antirracismo de mercado”: uma perspectiva de combate ao racismo que tem como finalidade, criar uma parcela negra classe média e até mesmo da burguesia, que não vai impactar na estrutura e reprodução do racismo.
Nesse sentido, pedimos licença ao autor do conceito para trazer uma reflexão de como as não-monogamias são cooptadas pela lógica consumista, hiperindividualista e transformadas em um produto vendável. Cada vez mais temos visto nas redes sociais, perfis que, através de discursos semelhantes aos de auto-ajuda, buscam vender soluções fáceis para problemas relacionais através das não-monogamias. “10 dicas para abrir a relação”, “5 maneiras de se acabar com o ciúmes”, “3 passos para convencer sua esposa a abrir o casamento”.
Essas abordagens às não-monogamias as entendem como simples modelos relacionais, que dizem respeito àquela esfera privada supramencionada. Ou seja, essas questões pouco têm a ver com a coletividade ou as estruturas de opressão. São questões da ordem privada, questões de escolha dos indivíduos. Sobretudo perfis de profissionais da área da saúde mental têm encontrado nas não-monogamias um nicho grande de atuação em prol dos “casais não-mono” e suas questões particulares.
A transformação dos discursos das não-monogamias em mais um produto vendável sob a lógica capitalista, tem fundado o que chamo de não-monogamias de mercado. Seguindo as articulações que Jones Manoel trouxe em seu vídeo, podemos perceber como essas não-monogamias servem para a satisfação de desejos individuais em busca do rompimento com a lógica de exclusividade sexual, enquanto mantém toda a estrutura hierarquizada e relações de poder que são constituintes base do sistema monogâmico.
Relações múltiplas não são, em si, algo contra-hegemônico. É bem simples exemplificar, inclusive, como as não-monogamias podem servir para a manutenção da lógica nuclear que nos isola e potencializa nossa exploração. A expansão do casal-núcleo em trisal, quadrisal, etc, nos mostra que essas relações mantêm o mesmo lugar de privilégios e, consequentemente, de negligências que a própria estrutura monogâmica estabelece. O entendimento político, estrutural e sistêmico da monogamia e o comprometimento radical com a abolição desse sistema é uma ameaça para a venda das não-monogamias de mercado.
É por isso que, da mesma forma que os discursos de pânico moral sobre uma suposta imposição da “ideologia de gênero” feita pelos conservadores, bem como os da imposição de não-monogamia feita pelos defensores da monogamia, aqueles que lucram com as não-monogamias empregam a retórica da necessidade de combater a imposição da Não-monogamia Política e outras formas radicais de pensar não-monogamias. É preciso criar um inimigo em comum para ser combatido por aqueles que querem tratar das não-monogamias tão somente como uma questão relacional. Nos acusam de querer “politizar” tudo e de estar policiando as vivências alheias.
É curioso a semelhança entre os discursos, mas isso nos indica que eles são produzidos na necessidade de manter o poder de um determinado grupo de pessoas. Criticar o casal-núcleo é minar os “privilégios de casal”. Ressaltar as violências das hierarquias é ameaçar o poder implícito do controle da autonomia alheia. O pânico da suposta imposição é porque quem está à frente da organização desses saberes radicais são pessoas negras, indígenas, LGBT, mulheres, pessoas com deficiência, pessoas da periferia, do campo. O que ameaça é a consciência racial, de classe, gênero, que entende como o sistema monogâmico faz parte da manutenção dos poderes capitalistas e cisheteropatriarcais.
O fantasma da Não-monogamia Política
A articulação da Não-monogamia Política, direcionada principalmente pelo pensamento anticolonial, é um compromisso radical com o fim deste mundo. Essa articulação surge da necessidade de entender que não basta relações múltiplas, não basta não-monogamia. É preciso o entendimento de que, apesar de nossas escolhas individuais representarem mudanças no nosso ciclo de convivência, elas não vão impactar no todo enquanto o que estrutura nossa vida for o capitalismo, o racismo, o cisheterossexismo.
A Não-monogamia Política é um conceito com um fim em si, justamente por se entender como escolha radical de luta emancipatória. Ao abolir tudo aquilo que se usa da estrutura monogâmica e, consequentemente o próprio sistema monogâmico, não será necessário uma “não-monogamia”. Vamos ter autonomia para estabelecer nossos vínculos, tendo como direcionamento princípios como o do apoio mútuo, autonomia, amizade, coletividade e comunidade. Mas enquanto isso não vem, a Não-monogamia Política se articula como proposição que alerta a necessidade de pensar também nas relações interpessoais ao pensar na revolução.
É necessário expor o caráter opressor das instituições família e casamento. É necessário entender como a lógica da propriedade privada e posse se faz presente nas relações de poder dentro das relações interpessoais. E por que é necessário? Porque mesmo em ambientes de esquerda, progressistas, marxistas, anarquistas, comunistas, encontramos oposição ao levantar tais questões. Enquanto esses espaços não se comprometerem com esses entendimentos, se faz necessário alertar, apontar e articular e a Não-monogamia Política e outras proposições radicais de não-monogamia.
Nesse sentido, entendemos ser um elogio perceber o quanto nossas produções e debates são encarados como uma ameaça por determinados grupos que escolhem ativamente se afastar dos debates políticos que perpassam tudo. A opção por não falar de política é, em si, uma escolha política, não é mesmo? O medo do fantasma da Não-monogamia Política é o medo das proposições radicais que articulamos. É o medo da mudança dessas relações e da perda de poderes por parte de determinados indivíduos. Esse medo sintomático deveria servir de alerta a quem busca se associar com esses grupos.
Do lado de cá, seguimos com o compromisso radical de imaginar novos futuros e também resistência e luta a monogamia, ao capitalismo, ao racismo, ao cisheteropatriarcado e suas violências. Seguimos apontando questões sistêmicas e propondo reflexões, mas sem o poder de “impor” qualquer desses ideais, afinal somos nós os marginalizados. Nunca tivemos o poder estrutural de impor ideologias, mas temos consciência de que, pela nossa sobrevivência, é necessário se opor à ordem dominante. Não vamos parar.
Referências:
MANOEL, J. As ilusões da representatividade: o antirracismo de mercado. Youtube, 28 abril, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qpUHnS4KMzY. Acesso em: 30 jun. 2022.
MISKOLCI, R. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 53, jun. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/7Yd3hfBsD9rH3NW3YqPpzvD/?lang=pt. Acesso em: 30 jun. 2022.
OKIN, S. Gênero, o público e o privado. Tradução: Flávia Biroli. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 2, p. 305-332, maio/ ago. 2008. Disponível em:https://www.scielo.br/j/ref/a/4MBhqfxYMpPPPkqQN9jd5hB/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 30 jun. 2022.
SEREJO, E. S. Em defesa de que famílias? Bolsonarismo, pânico moral e o protagonismo da categoria família nas eleições de 2018. Revista Eptic, Aracajú, v. 23, n. 1, p. 27-46, jan/abril. 2021. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/eptic/article/view/13887. Acesso em: 30 jun. 2022.
Texto por: Nana Miranda e Newton Jr.
Revisado por: Nana Miranda e Thais Carvalho.
Como citar?
LIMA JR, N. S.; MIRANDA, R. Um espectro ronda as redes – o espectro da Não-monogamia Política. NM em Foco. 2022. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/um-espectro-ronda-as-redes-o-espectro-da-nao-monogamia-politica/. Acesso em: dia, mês, ano.