Ao abordar as não-monogamias, um dos argumentos mais utilizados contra é a ideia de que tudo são escolhas individuais. Que temos a liberdade para nos relacionar da forma que desejarmos. Vamos então analisar como a monogamia se constitui enquanto uma estrutura e, consequentemente, impera não só como norma social, mas também no próprio ordenamento jurídico, o que mostra sua relação com o Estado.
Uma imposição colonial.
Para começar, é interessante apontar como a monogamia chega nesse território que vem a ser chamado de Brasil. Anterior ao marco colonial, tínhamos aqui diversas realidades, diversas possibilidades. Ou seja, diversos mundos. Os vários povos que aqui viviam tinham, cada um, formas de se relacionar e rituais de união. Essas relações eram pautadas por outras cosmovisões, fossem múltiplas ou não. O pesquisador Guilherme G. Felippe fala do que os jesuítas chamavam de “amancebamento”, ou seja, uniões que não seguiam a mesma lógica contratualista e indissolúvel da monogamia cristã.
A colonização não acabou, pelo contrário, segue se atualizando. Um de seus braços é o projeto de catequização. Parte desse projeto se deu justamente na abolição de quaisquer formas relacionais existentes anteriormente, em prol da imposição da monogamia cristã. As possibilidades relacionais dos diversos povos não eram aceitas e nem reconhecidas como formas válidas, independente de serem entre duas pessoas ou relações múltiplas. Para o sucesso das obras missionárias, era essencial que os indígenas fossem batizados e as relações não-monogâmicas existentes impediam isso. Geni Núñez fala de como os projetos de colonização e catequização são intrínsecos. Essa conversão ao cristianismo seria a transição do “selvagem” para o “civilizado”.
A escritora nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí, em seu livro “A invenção das mulheres”, traz um relato que mostra como o marco colonial operou de forma semelhante em África. As relações múltiplas eram uma realidade do povo Iorubá. Os missionários cristãos se dedicaram em abolir essas relações, causando diversos conflitos entre eles e os Iorubá. Em seu livro temos então uma citação do secretário da Sociedade Missionária Internacional – SMI, que mostra peversidade do pensamento colonial, que tolera a escravidão, mas abonima as relações múltiplas: “O cristianismo melhorará a relação entre mestre e escravo; a poligamia é uma ofensa à lei de Deus e, portanto, é incapaz de melhoramento”.
Monocultura das ideias.
O processo de colonização se deu através de muita violência. Genocído, etnocídio e epistemicídio. Da imposição de uma forma única de se viver, que seria a forma certa, abençoada pelo deus cristão. Essa forma é a que tem o referencial eurocêntrico e androcêntrico. Essas violências seguem reverberando e esse referencial segue se autoafirmando. O pensador indígena anticolonial, Ailton Krenak, aponta o discurso filosófico-sociológico da modernidade com uma “monocultura das ideias”. Ou seja, um mundo em si, autorreferenciável, que não admite outras possibilidades e não aceita críticas. É esse mundo que estrutura nosso imaginário. A expectativa social é de que sejamos heterossexuais, monogâmicos e critãos. As dissidências são colocadas como inimigas da ordem natural, sendo que de natural a norma não tem nada.
Uma das estratégias de defesa da norma é afirmar que não são imposições e sim escolhas livres. Geni Núñez articula como essa estratégia tem a ver com a própria noção cristã de livre-arbítrio. Sem ele, não é possível punir ou falar de culpa. Não é possível oferecer um céu ou condenar a um inferno. Apenas quem não tinha consciência de seus próprios pecados poderia ser considerada inocente, daí a necessidade de se levar a palavra para que todos possam se converter e serem “salvos”. E essa lógica de salvação segue atualizada em muitas igrejas cristãs e suas atividades missionárias.
Uma imposição jurídica.
O próprio ordenamento jurídico Brasileiro nos aponta como essa ideia de escolha é falha. A monogamia, como aponta o pesquisador Marcos Alves da Silva, se apresenta em vários contextos como princípio estruturante do Direito da Família, no mundo ocidental. A constituição brasileira, ao falar em seu artigo 226 sobre a proteção do Estado à família, se refere à família monogâmica. Isso se torna evidente ao analisarmos os diversos dispositivos legais que existem para garantir que o casamento seja monogâmico.
No artigo 1.521, do Código Civil, no inciso IV, apresenta como impeditivo para o matrimônio, o indivíduo já ser casado. O artigo 1.525 define, para o processo de habilitação do casamento, a necessidade de se apresentar uma declaração de estado civil, como maneira de coibir alguém já casado de contrair novo casamento. O artigo 235 do Código Penal tipifica a bigamia, ou seja, a coloca como um crime, com pena de reclusão de 2 a 6 anos. O fato de termos esses dispositivos, inclusive tipificado no Código Penal, nos mostra como a defesa que o Estado propõe, citada na constituição, é a defesa da monogamia.
Em 26 de julho de 2018, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, teve decisão contrária ao registro de uniões poliafetivas. A partir de então, os cartórios passaram a ser proibidos de registrar tais uniões. Apontaram justamente a falta de respaldo legal, bem como na jurisprudência. Apesar das transformações sociais e do próprio Estado se propor a proteger outros formados de família, quando ligados ao casamento, essas relações, sejam entre pessoas de gênero diferente, ou o mesmo gênero, precisam ser monogâmicas para serem reconhecidas e usufruírem dos direitos que apenas o casamento oferece.
Em sua tese, Marcos Alves da Silva fala de como diversos autores das áreas do Direito Matrimonial e da Família sustentam a monogamia como um princípio estruturante. Diversos desses autores partem de uma lógica evolucionista, em que as não-monogamias seriam selvagens e a monogamia seria pura e evoluída. Isso diz respeito ao referencial cristão e eurocêntrico presente no imaginário de boa parte da população. Geni Núñez usa o exemplo do próprio crime de adultério, que até 2005 era passível de encarceramento. O Estado brasileiro, supostamente laico, tipificando algo que o cristianismo considera pecado.
Monogamia estrutural.
Através de todos esses artifícios a monogamia se organiza enquanto dimensão natural, inata e abençoada pelo deus cristão. Ela estrutura nossas relações como a única opção possível. A expectativa social é de que as relações sejam monogâmicas. Outras opções sequer são consideradas. O Estado impõe que as relações sejam monogâmicas, outras opções não terão a proteção dele. Como podemos falar de uma simples escolha em um cenário desses?
Somos ensinados desde cedo sobre como nos relacionar. Os exemplos que temos, mesmo de nossos pais, são na sua maioria, de relações monogâmicas. As referências que temos nas produções midiáticas são de casais monogâmicos e de todas as performances do amor romântico. Músicas, filmes, livros, séries e animações. Ainda que seja a representação de um ser interdimensional, que pode cuspir fogo e voar, ele vai querer se casar e formar uma família monogâmica de comercial de margarina.
Para aqueles que decidem então romper com a monogamia, temos um cenário de inseguranças. Falar de ter relações que não seguem a norma causam estranheza e, dependendo de quem for, reações violentas. Algumas amizades preferem se afastar, por passar a nos ver como uma ameaça a sua relação. Somos associados a uma promiscuidade que não nos diz respeito, pois é delírio colonial. Alguns familiares se sentem no direito de questionar a validade das nossas relações e de nosso direcionamento político. Mas isso vai além, em determinadas situações, falar sobre não-monogamia pode inclusive nos prejudicar no ambiente de trabalho.
Nos espaços de troca do NM em Foco, constantemente recebemos relatos de pessoas que, ao falar sobre não-monogamia, recebem diversas violências de profissionais da área da saúde mental. Na saúde sexual, a preparação é para atender pessoas heterossexuais e monogâmicas. No direito, vivemos uma insegurança jurídica, em relação a plano de saúde, a partilha de bens. E se quisermos adotar, como as assistentes de saúde e os juízes responsáveis vão agir? Se quisermos incluir mais de uma parceria no plano de saúde, como as operadoras vão reagir? A monogamia estrutura nossas relações interpessoais, todas elas, não só nossas relações afetivo-sexuais.
Por isso, pensar a estrutura monogâmica é muito mais do que falar de relações afetivo-sexuais. A monogamia historicamente está ligada à propriedade privada, ao controle de corpos, ao cerceamento da autonomia e à exploração. A articulação da Não-monogamia Política se dá através do pensamento anticolonial, antirracista, anticapitalista, da inteseccionalidade e identidade polítca. Nossas proposições são sobre o resgate dos ensinamentos ancestrais sobre comunidades e coletividade. Construímos no agora relações autônomas, pautadas no apoio mútuo. Nos permitimos imaginar mundos possíveis para além das ficções a nós impostas.
Referências:
DANNER, L. F.; DANNER, F.; DORRICO, J. Pensamento indígena brasileiro como crítica da modernidade: sobre uma expressão de Ailton Krenak: Array. Griot: Revista de Filosofia, [S. l.], v. 19, n. 3, p. 74- 104, 2019. Disponível em: https://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/griot/article/view/1277. Acesso em: 25 jan. 2022.
FELIPPE, Guilherme G. Casar sim, mas não para sempre: o matrimônio cristão e a dinâmica cultural indígena nas reduções do Paraguai. História UNISINOS, Porto Alegre, v. 12, ed. 3, p. 248-261, Setembro/Dezembro, 2008. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/5434. Acesso em: 25 jan. 2022.
NÚÑEZ, G. D.; OLIVEIRA, J. M.; LAGO, M. C. S. Monogamia e (anti)colonialidades: uma artesania narrativa indígena. Teoria e Cultura. v. 16 n. 3 (2021): Dossiê Afetos, políticas e sexualidades não-monogâmicas. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/34439. Acesso em: 25 jan. 2022.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. 324p. ISBN978-65-86719-49-9.
SILVA, Marcos Alves da. Da superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da família. Orientador: Gustavo Mendes Tepedino. 2012. 295 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, 2012.
Texto por: Newton Jr
Como citar?
LIMA JR, N. S. Uma questão de escolha? NM em Foco. 2022. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/uma-questao-de-escolha. Acesso em: dia, mês, ano.