Reflexões sobre amor romântico, padrão de beleza, solidão e preterimento
O debate sobre solidão e preterimento não é algo recente. Essas reflexões partem de diversos locais, como das experiências de mulheres racializadas, pessoas trans, bem como pessoas gordas e pessoas com deficiência (pcds). Nesses questionamentos, o amor romântico e o padrão de beleza são levados em conta, porém há um elemento que costuma ser deixado de fora dessa equação. O mito do amor romântico compõe a estrutura monogâmica, logo, para se discutir e analisar a solidão e o preterimento, é importante levar em consideração a própria monogamia.
Como nos aponta Vasallo, em seu livro “Pensamiento monógamo, terror poliamoroso”, a monogamia não se constitui enquanto uma prática, mas sim como um sistema, uma forma de pensamento. Ela é uma superestrutura que determina o que chamamos de vida privada, nossas vivências afetivas e afetivo-sexuais. Ela distribui nossas vivências afetivas e as organiza a partir de hierarquias pré-estabelecidas. É importante ter em mente esse entendimento estrutural da monogamia para se poder adicionar ela às reflexões sobre padrão de beleza, solidão e preterimento. O mito do amor romântico se ergue ao redor da monogamia, se tornando assim um de seus constituintes base.
O amor romântico e os padrões de beleza.
O “amor cortês” é apontado como “pai” do amor romântico. Ele surge na Europa medieval, no fim do século XI, caracterizado por uma série de atitudes, mitos e etiquetas de exaltação do amor. Seu surgimento, contudo, se dá por uma questão econômica. A transmissão da herança nesse período da Idade Média se dava considerando o parentesco lateral (irmãos e irmãs) e não vertical (filhos e filhas). Assim, os jovens nobres desabonados encontraram no cortejo e casamento com jovens ricas a passagem para sua ascensão social. Dessa forma, o amor passa a ser gradativamente uma condição para o casamento.
Jean-Jacques Rousseau, filósofo suíço, é considerado um dos precursores do romantismo. O amor enaltecido e idealizado por ele era especialmente o amor conjugal. Para Rousseau, apenas o amor conjugal estava diretamente ligado à constituição da família, e assim servia ao coletivo e não a desejos egoístas e efêmeros. Essa família idealizada por Rousseau trazia uma aliança entre o sexo e o amor. A vivência da sexualidade deveria visar não só a satisfação pessoal, mas também a felicidade alheia e o bem comum. É importante mencionar que o amor passou por diversas transformações ao longo dos séculos, estabelecendo relações e reestruturações à medida que novas camadas teóricas e filosóficas foram sendo adicionadas e experienciadas.
As discussões sobre amor e relacionamentos, no entanto, ganham destaque na formação da sociedade moderna que se dá em oposição à sociedade antiga, das quais trouxeram mudanças à família nuclear monogâmica. Com a revolução industrial, os filhos passam a ser considerados um investimento para o futuro, típico do combo “moderno” constituído pela economia, cultura e sociedade. Uma boa formação pessoal passou a ser necessária para a inserção no mercado de trabalho cada vez mais competitivo. Assim, no desejo de se garantir e aumentar os próprios bens, as famílias burguesas passam a ver seus filhos como um bem precioso em que se deve ser investido (o “combo” aqui ganha relevo). Não só o pensamento rousseauniano, mas a totalidade dos pensadores e autores do romantismo, colaboraram para a disseminação da ideia de investimento econômico como sinônimo de investimento amoroso.
Rousseau foi ferrenho crítico ao quadro social de sua época, de relações engendradas pelo capitalismo, individualismo e competitividade. Apesar disso, suas idealizações sobre o amor foram inflacionadas pelo capitalismo e alinhadas à ideologia consumista. Durante o século XX, os processos de massificação e individualização vão se dando de forma simultânea. Ao mesmo tempo que a cultura de massa hierarquiza os desejos e projetos da população, ela vende um ideal de realização singular e pessoal. O amor se torna tema central da felicidade moderna e passa a ser presença obrigatória nos produtos da indústria cultural.
O encontro da “alma-gêmea” é vendido como solução para todos os males e meio de acesso a uma realização única e, consequentemente, a felicidade. A indústria cinematográfica tem um papel imprescindível na venda do “final feliz”, que consequentemente ajuda a solidificar a crença de que o amor acontece num encontro singular de realização plena, possível a todos.
Da mesma forma, na construção dos ideais de beleza e boa forma que seguem a humanidade, sempre houve ideologias políticas, elitistas e sociais. Ainda hoje, a estética corporal, bem como os fatores de raça, são divisores sociais, na medida que excluem os que não estão de acordo com os arquétipos difundidos, sobretudo, pelos meios de comunicação. O belo é construído a serviço de uma lógica de mercado e vendido por produtos midiáticos. O corpo “perfeito” e que deve ser almejado é o corpo hegemônico: cishétero, branco, magro, sem deficiência.
Entendendo como se dá o processo de imposição dos ideais do amor romântico, podemos fazer sua associação a como também tem a ver com a venda do ideal de corpo “perfeito” e como isso se entrelaça. Os “finais felizes” são apresentados sendo vividos por príncipes e princesas, esses tendo o corpo ideal e almejado. E, sendo essa realização plena vendida como possível a todos, o que se procura então é vivenciar ela com seus príncipes e princesas. Com aquelas pessoas idealizadas, de corpo padrão, cujo encontro trará solução para todos os problemas.
Nesse sentido, a escalada relacional da estrutura monogâmica é atravessada pelas expectativas e idealizações do amor romântico. E a busca pela “pessoa certa” é atravessada pelos padrões de beleza, raça/cor, performance de gênero e até mesmo de classe social, que são vendidos diariamente pelos produtos midiáticos e que, de alguma forma, influenciam o que se convencionou chamar de “questão de gosto”, afinal relacionamentos amorosos são vistos como investimentos, principalmente pensando a longo prazo. Quando alguém não se encaixa no modelo relacional apaixonado e feliz que é propagado como possível para todos, ou quando alguém não corresponde aos padrões de “beleza”, isso é visto como infortúnio pessoal, incapacidade particular, e nunca como consequência de ideias distantes da realidade e que são sistematicamente impostas.
Solidão e preterimento.
A busca pelos ideais do amor romântico e do padrão de beleza é uma busca por um conto de fadas. As pessoas se envolvem, mas em muitas situações tem a esperança de encontrar “algo melhor”, encontrar a “pessoa certa”. Nessa busca, alguns corpos são colocados num lugar de fácil preterimento. São corpos descartáveis, dispensáveis. Corpos que, socialmente, já experienciam situações de abjeção. Afinal, a expectativa social é de que se viva o conto de fadas e para isso são necessários príncipes e princesas. Mas o que acontece com todas as outras pessoas que não são da “realeza”?
Partindo da lógica monogâmica de hierarquização das relações, tendo a afetivo-sexual como a “relação de verdade”, o que temos é um cenário de pessoas que ou vivenciam tardiamente essas relações ou sequer as vivenciam ao longo da vida. Podemos tomar por exemplo os dados do IBGE de 2010 que aponta que cerca de 52,2% das mulheres negras não vivenciavam uniões estáveis naquele momento. A trajetória de pessoas negras, sobretudo mulheres, é permeada pela solidão. Essa solidão não se dá num vácuo, ela é fruto do próprio modelo de sociedade que vivemos. Outro exemplo que poderíamos mencionar é a vivência de afetos, de forma geral, e do amor de forma específica, de homens gays negros afeminados, que por não performarem um papel de gênero heteronormativo e por serem negros, acabam vivenciando duplamente preterimentos. Quando estes performam um papel de gênero “normativo”, por exemplo, recai sobre estes corpos uma fetichização do homem negro. Dois aspectos importantes para se entender solidão e não vivências de relacionamentos/relações afetivas.
O que é vendido é a possibilidade de realização singular através do encontro da “alma-gêmea” que seria possível a todos. Já a realidade que se mostra é a de que nem todos os corpos são desejados para esse encontro. Seja buscando o que não existe, seja não sendo considerado válido para esse encontro, a busca pelos ideais do amor romântico geram sofrimento – mental e até mesmo social. A estrutura monogâmica é, em sua constituição, uma estrutura excludente. Desde o surgimento da família monogâmica na transição para as sociedades de classe, atravessando sua transformação em sacramento religioso com o advento do cristianismo, a estrutura monogâmica é feita para corpos cishétero, branco e sem deficiência. Exclusão essa que se fortificou e solidificou através da disseminação do mito do amor romântico e que, de forma acrítica, alguns atores acabam assimilando.
Apesar de ser, em sua essência, excludente, a vivência da monogamia e do amor romântico ainda é o almejado e desejado por muitos de nós. Isso se dá justamente por conta da imposição colonial dessa maneira única de amar e se relacionar. Nossos desejos e afetos foram colonizados junto dessas terras. Nosso imaginário é construído ao redor desses ideais, muito por conta de como eles ainda são base para diversos produtos midiáticos e representações das mais diversas e presentes no nosso cotidiano – escolas, nas nossas próprias famílias, universidades, músicas, etc. Por conta disso, o debate sobre as não-monogamias costuma ser rechaçado por pessoas dissidentes. Elas afirmam o desejo de se vivenciar tudo aquilo que as foi negado, inclusive a ideia de ser “assumida”, de encontrar uma validação social a partir de uma relação de exclusividade afetivo-sexual.
“Nem tudo que nos foi proibido é bom.”
A família nuclear monogâmica surge num contexto de imposição da exploração e de interesses econômicos. Romper os laços de coletividade foi essencial nessa imposição violenta feita pelas classes dominantes. A busca por sobrevivência, que antes era coletiva, foi então substituída por uma busca individual. Fomos isolados em núcleos que competem entre si, na procura por acumular bens e posses, de melhores condições de vida. Essa imposição aqui em Abya Yala [1], se dá a partir do marco colonial e suas violências seguem reverberando em nossos corpos.
Apesar disso, a ancestralidade sempre nos ensinou que o sentido da vida é coletivo. As comunidades, e não a família nuclear e seu casal, que movem o mundo. Mas a estrutura monogâmica empobrece nossas relações comunitárias. Ela hierarquiza e categoriza nossos afetos. Ela desvaloriza nossas amizades e coloca a família nuclear como único refúgio nesse mundo. Contudo, sabemos bem do lugar de violências que a família pode ser. Isso fica bem evidenciado pela quantidade expressiva de violências que a população LGBT+ sofre dentro de suas casas, como os diversos tipos de violência – psicológica, física, verbal, sexual – expulsão, desamparo, etc.
Por conta da estrutura monogâmica é que entendemos a solidão a partir da vivência ou não de relações afetivo-sexuais. Mas se analisarmos através dessas hierarquias, percebemos que justamente as comunidades é que nos sustentam. Infelizmente nosso imaginário só valida relações se estas forem afetivo-sexuais, e nesse sentido os vínculos afetivos, as amizades, seguem sendo desvalorizadas e desconsideradas. Existe todo um mundo de possibilidades dos vínculos afetivos e até mesmo de vivências sexuais para além dos ideais cisheterocentrados e eurocêntricos do amor romântico.
Como nos convida a refletir a pensadora anticolonial Geni Núñez, a negação da vivência de determinados espaços nos alerta justamente para como as relações de poder se organizam e funcionam. Apesar da forte propaganda do mundo colonial, suas estruturas nunca cumpriram com o que prometeram. A felicidade e segurança que a estrutura monogâmica e o amor romântico nos vendem são uma falácia que se comprova analisando essa estrutura. É necessário então que se pondere sobre o que precisamos, sobre o que de fato desejamos, sobre o que importa de verdade. É nessa compreensão coletiva que passamos a entender que nem tudo o que nos foi negado é bom. Como afirma Geni, “anticolonizar é deixar de atribuir virtudes essenciais ao que é colonialista”.
É nesse contexto de produção de saúde anticolonial que procuramos construir um projeto de futuro coletivo e emancipatório. A busca pela Não-monogamia Política é a do resgate das potências das relações comunitárias. É de valorização dos nossos vínculos afetivos, nossas redes de apoio. De rompimento com a lógica nuclear que nos isola. Entender como a estrutura monogâmica, através do mito do amor romântico, produz solidão e preterimento e reforça os padrões de beleza excludentes é necessário para entendermos como destruir essa estrutura, bem como é essencial para podermos então vivenciar relações igualitárias, autônomas e saudáveis.
[1]. Abya Yala vem sendo utilizado por povos originários como uma forma de contraponto à expressão América, na construção de um sentimento de unidade e pertencimento desses povos.
Referências:
“A violência contra a mulher e o mito do amor romântico” – Adriana Cristina dos Santos e demais;
“Abaixo a Família Monogâmica” – Sérgio Lessa;
“Corpo, mídia e status social: reflexões sobre os padrões de beleza” – Gisele Flor;
“Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas: reflexões acerca da afetividade e solidão da mulher negra” – Lorena Ribeiro Ferreira;
“Nem tudo que nos foi negado é bom: produzindo saúde anticolonial” – Geni Núñez (disponível em: https://www.instagram.com/p/CA0YmpeHv7a/)
“O livro do amor vol.1” – Regina Navarro Lins;
“Pensamiento monógamo, terror poliamoroso” – Brigitte Vasallo;
“Tudo sobre o amor: novas perspectivas” – bell hooks;
“Uma discussão sobre o ideal de amor romântico na contemporaneidade: do Romantismo aos padrões de Cultura de Massa” – Maria Thereza Toledo.
Texto por: Alef Santana, Newton Jr.
Revisão: Nana Miranda, Thainá Salomão
Como citar?
SANTATA, A. D. S.; LIMA JR, N. S. Aquilo que nos foi negado. NM em Foco. 2021. Disponível em: <https://naomonoemfoco.com.br/aquilo-que-nos-foi-negado/>. Acesso em: dia, mês, ano.
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texto maravilhoso, como sempre! pra compartilhar com geral