A estrutura monogâmica se organiza em ritos, símbolos, hierarquias, dinâmicas e acordos não ditos. Existe toda uma obrigação contratualista presente nessa estrutura, que nos exemplifica como ela é interligada à lógica cristã, sobretudo ao falarmos desse território chamado hoje de Brasil.
A lógica contratualista cristã
Ribeiro (2002) localiza na transição do cristianismo para religião oficial do Estado Romano, a sacralização do rito de casamento. O casamento passou a representar a união de Cristo com sua igreja. Com isso, ele passou a obrigatoriamente ter duas características: ser indissolúvel, pois o que deus uniu o homem não separa, e seguir uma lógica contratualista, organizada em diversos acordos (muitas vezes não ditos) para a manutenção das dinâmicas e hierarquias.
Um exemplo que trata bem dessa questão da lógica cristã e contratualista da estrutura monogâmica é a maneira como os Jesuítas lidaram com as diversas possibilidades relacionais dos povos indígenas. Felippe (2008, p. 249) fala de como esses Jesuítas se empenharam em suprimir essas possibilidades e impor a monogamia cristã. Além das relações múltiplas, os indígenas Guarani se relacionavam entre si, a dois, a partir do desejo de ambos, e também encerravam essas relações a partir do interesse mútuo nisso.
As relações múltiplas, a “infidelidade”, a “instabilidade” e essas relações não-contratuais eram motivos para os Jesuítas sequer considerarem essas relações como casamento. Tanto o é, que optaram por chamar de “amancebamento”. Tanto essa classificação quanto a classificação das relações múltiplas em poligamia se deu na projeção das categorias coloniais na construção de um entendimento dos indígenas, que não diz respeito as suas vivências de fato, mas sim as projeções dos colonizadores.
A partir de genocídio, etnocídio e epistemicídio, essas possibilidades relacionais diversas que não seguiam a lógica indissolúvel e contratualista foram perseguidas, combatidas e atacadas em prol da imposição do referencial único de vida. Assim, o se relacionar passou a ser orientado por esse referencial, dado como natural e inato. Isso perdura até hoje, tendo essa lógica também influenciado o próprio ordenamento jurídico.
As reverberações da colonização do nosso imaginário
O casamento permitido pela legislação brasileira é o monogâmico. Isso não se deu ao acaso. A tese que guia nosso ordenamento é monogamista. Muitos dos pensadores da área do direito de sucessão e família entendem que a monogamia é o modo natural e evoluído em que toda a civilização ocidental e cristã se organiza. A lei do divorcio é de 1977, ou seja, é um direito recente. Na época de sua implementação houve muitos protestos contra, justamente pelo quanto a lógica cristã indissolúvel é presente no imaginário popular.
Sendo assim, nosso maior referencial é de relações contratualistas e, apesar do entendimento de que elas acabam, muitas pessoas ainda têm presente a expectativa de que elas serão eternas. Ao escolher a Não-monogamia Política, escolhemos um direcionamento que visa romper com essas lógicas, que são parte da estrutura monogâmica. Contudo, temos um desafio de o que construir no lugar daquilo que fomos a vida toda ensinados a vivenciar.
Combinados, acordos e a busca por segurança
Uma questão recorrente é a dos acordos, e eles fazem justamente parte dessa lógica contratualista presente em nosso imaginário. Para muitas pessoas, é necessário organizar acordos que delimitam as vivências de forma específica. Esses acordos costumam vir de um lugar de insegurança. Eles seriam a forma de as pessoas se sentirem seguras em relações que não mais se pautam pela norma monogâmica. Mas, será que esses acordos de fato garantem uma segurança?
Um dos acordos monogâmicos é a exclusividade afetivo-sexual. Mas sabemos bem como esse acordo delimita uma organização, dinâmicas e hierarquias, mas não vem efetivamente a delimitar as ações. A traição é constituinte da estrutura monogâmica. A infidelidade conjugal existe justamente pelas relações se organizarem com essa lógica exclusivista. Sendo que nossos desejos mudam constantemente e são muito múltiplos, o oposto do que a norma prega.
Em um entendimento limitado de monogamia, a colocando apenas como exclusividade sexual, alguns modelos se pautam na possibilidade de vivenciar essas experiências enquanto o casal principal é protegido por determinados acordos. Ainda que o entendimento sobre a monogamia seja expandido para a questão afetiva, diversos acordos limitam as vivências afetivas e sexuais. São acordos que cerceiam a autonomia em prol de uma ideia de segurança que serve para proteger o casal principal também nesses casos.
Uma das preocupações de quando determinados modelos são apresentados na mídia, é de seus participantes demarcarem que suas relações “não são bagunça, tem acordos”. Isso exemplifica bem o quanto essas dinâmicas dizem respeito a uma tentativa de manter uma proximidade com a norma, para uma aceitação social maior. Uma tentativa de higienizar essas vivências não-mono, às colocando no mesmo lugar contratualista da estrutura monogâmica.
Essa centralidade do casal é constituinte um básico dessa estrutura. Ela se organiza hierarquicamente a partir desse casal. Essa dinâmica é também bíblica, afinal, “Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne” (Gênesis 2:24). Isso também diz respeito à organização nuclear cada vez mais individualista das famílias atuais. A imposição da busca por sobrevivência individual se deu justamente para a imposição e potencialização da nossa exploração.
Não-monogamia Política e os acordos
Pensando a partir da Não-monogamia Política, como encarar então esses acordos e essa busca por segurança? Por um entendimento estrutural e sistêmico, é necessário levar em consideração o quanto nosso imaginário é colonizado e direcionado por essa lógica contratualista. Logo, é esperado que as pessoas busquem essa segurança fazendo o que foram ensinadas a fazer: criando acordos relacionais.
Mas é importante levar em conta que esses acordos podem servir para organizar dinâmicas, mas não deveriam ser usados como dispositivo de cerceamento da autonomia alheia. É necessário também que se leve em consideração a fluidez, tendo esses acordos não como cláusulas pétreas, mas sim como mutáveis, transitórios, negociáveis. Se eles são necessários para a criação de uma segurança, é interessante então procurar o que gera as inseguranças. Localizar, nomear e lidar com elas.
Construímos a autonomia na coletividade e no apoio mútuo, e não mantendo a mesma lógica monogâmica em nossas relações. É necessário um compromisso radical com a abolição desses constituintes, por entender as violências que eles produzem. Não vamos encontrar segurança em dispositivos monogâmicos justamente porque eles não criam segurança nem mesmo na monogamia, haja vista todo o gasto de energia envolvido na vigilância das relações e que, ainda assim, tem a traição como regra.
A Não-monogamia Política é um direcionamento de resgate da nossa autonomia, ao mesmo tempo que um resgate dos ensinamentos ancestrais de coletividade e comunidade. A descentralização é um exercício desse resgate. Nos retirar de um pedestal dado pela lógica cristã e nos pensar integrados a uma rede de apoio. Segurança vamos encontrar ao lidar com nossas questões da melhor forma, entendendo nossa fluidez e nos desobrigando a cumprir as expectativas das ficções coloniais impostas a nós.
Referências:
FELIPPE, Guilherme G. Casar sim, mas não para sempre: o matrimônio cristão e a dinâmica cultural indígena nas reduções do Paraguai. História UNISINOS, Porto Alegre, v. 12, ed. 3, p. 248-261, Setembro/Dezembro, 2008. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/5434.
RIBEIRO, Simone Clós Cesar. As inovações constitucionais no Direito de Família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3192.
SILVA, Marcos Alves da. Da superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da família. Orientador: Gustavo Mendes Tepedino. 2012. 295 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, 2012.
Texto por: Newton Jr
Como citar?
LIMA JR, N. S. Até que a morte os separe. NM em Foco. 2022. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/ate-que-a-morte-os-separe. Acesso em: dia, mês, ano.