Reflexões sobre o antirracismo numa posição política da não-monogamia
Bom, para começar, é importante explicitar que a análise que pretendemos fazer da monogamia é estrutural, então não tem foco numa relação específica, mas sim na estrutura de controle, na norma social. Sendo assim, a não-monogamia que falamos aqui é esse pensamento contra-hegemônico, anti-norma. Nesse sentido, a não-monogamia não é apenas um termo guarda-chuva para modelos relacionais que fogem a lógica da norma monogâmica, mas também um posicionamento político.
Entendendo a monogamia como um dos braços do patriarcado, essencial para uma mão de obra indispensável para o capitalismo, percebemos as opressões que se conectam diretamente a essa estrutura de controle. A instituição da família nuclear surge para ser a mantenedora dos bens do patriarca, hierarquicamente superior aos outros membros e que detinha o poder pátrio sobre mulher, filhos e escravos. A monogamia como imposição para mulher tem por objetivo ser uma maneira eficiente de proteger a linhagem paterna. O controle do corpo e da sexualidade feminina assegura a filiação biológica do homem, garantido assim, a sucessão da propriedade privada da família para filhos legítimos. Eventuais filhos fruto de relacionamentos extraconjugais são considerados ilegítimos, portanto não tem direito a herança. Tudo converge para a proteção da família nuclear e seu patrimônio.
Essa família se transforma com o tempo, e com o advento do mito do amor romântico, ela passa a ter toda uma outra roupagem, seguindo abençoada pelo deus cristão, num exemplo de Igreja e Estado juntos controlado corpos. A expectativa social ainda é da mulher cuidar dos filhos, cuidar do lar, e se conseguir, cuidar da sua própria carreira. A traição feminina ainda é tida como uma afronta ao sagrado da família, enquanto a traição “masculina” é desde sempre, mais um elemento da estrutura monogâmica, uma vez que apenas a fidelidade feminina é necessária para manter a dinâmica familiar já mencionada. A própria estrutura nuclear a coloca em competição com diferentes núcleos familiares, e se mostra hierarquicamente superior às outras relações, que tão somente rodeiam esse núcleo.
Uma Não-Monogamia Política existe justamente para se opor a essa estrutura patriarcal nuclear. Buscamos relações que se afastem da lógica de posse sobre o outro. Uma quebra com essa hierarquização entre relações. Uma ruptura com a reprodução desse modelo nuclear de parentalidade. E sendo assim, é um posicionamento anticapitalista que entende precisar se opor a outras estruturas de poder, como o racismo e a LGBTIAfobia. Então, como essa não-monogamia pode ser antirracista?
Pessoas racializadas carregam marcas invisíveis dos malefícios que a norma monogâmica causa em nós. Essa estrutura não foi pensada para pessoas não brancas, afinal, quem detinha (e detém) o poder eram (e são) homens (cishet) brancos, responsáveis inclusive pela nossa animalização. Se não éramos considerados sequer humanos, porque esse modelo seria pensado para nós? Acontece que a colonização nos impôs esse modelo, justamente por ser o abençoado por esse deus cristão, até ele ser considerado o normal e inclusive o desejável por muitos de nós.
Pessoas não brancas já pensam, debatem, escrevem e divulgam essa discussão sobre a não-monogamia. Temos pelas redes sociais diversos desses espaços, com as mais variadas abordagens. Acontece que, infelizmente, não temos a mesma visibilidade que pessoas brancas falando sobre esse assunto. O que gera para muitos a ideia de que não-monogamia é coisa de branco classe média. Ideia essa, que costuma afastar pessoas racializadas da discussão, justamente por não verem suas pautas sendo reivindicadas nos espaços de maior visibilidade. Um movimento necessário para uma não-monogamia antirracista é a promoção de um debate sobre as nossas especificidades. Precisamos de mais pessoas não brancas sendo ouvidas e divulgadas. NM em Foco é um espaço que se propõe a isso, sendo assim, optamos começar por esse texto.
Uma não-monogamia antirracista se preocupa com a assimetria das relações. Percebe que se posicionar contra a monogamia é insuficiente para acabar com o racismo dentro das relações. Se preocupa com o questionamento do padrão branco de beleza, com as questões de preterimento e solidão. Pontua e se aprofunda nessas questões, procura as raizes delas. Uma não-monogamia antirracista se preocupa com o pensamento de modelos de parentalidade coletiva por saber da realidade de pessoas não brancas nas comunidades. Se opõe à monogamia por entender que ela é um dos fatores que contribuem para o alto índice de feminicídios e que pessoas não brancas são estatisticamente as mais atingidas por este crime.
Para uma não-monogamia antirracista de fato, precisamos então que ela seja sempre encarada como um posicionamento político coletivo. Não podemos pensá-la como antirracista, se a mesma reproduz uma lógica liberal nas relações, afinal não existe liberdade para nós no capitalismo. É uma posição que deve levar em consideração interligação entre raça, gênero e opressão de classe. Precisamos, dentro dos debates acerca da não-monogamia, superar a individualização. Pensar na estrutura e percebê-la alimentando e sendo alimentada por outras, intrinsecamente interligadas e nos colocar contra a monogamia, que mata, assim como nos colocamos contra o racismo, o patriarcado, a LGBTfobia.
Texto por: Newton Jr, Nana Miranda
Revisão: Simone Bispo
Como citar:
LIMA JR, N. S. MIRANDA, R. Como a não-monogamia pode ser de fato antirracista?. NM em Foco. 2020. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/como-a-nao-monogamia-pode-ser-de-fato-antirracista. Acesso em: dia, mês, ano.