Reflexões sobre a estrutura monogâmica, sua toxicidade e estratégias para relações não-mono
Saúde mental. Cada vez mais esse tema tem sido discutido e estado em evidência nas campanhas publicitárias, livros, grupos de estudo, etc. Com isso, temos tido acesso a bastante material, procurando conscientizar sobre a importância de cuidar de nossa saúde mental. Apesar disso, ainda é grande a quantidade de pessoas que se recusa a falar a respeito, por vergonha ou medo do preconceito acerca do tema. E isso acontece também nos relacionamentos. Como a estrutura monogâmica contribui para um sofrimento psíquico, principalmente ao analisarmos a situação de maneira interseccional, pensando nas opressões de raça, gênero, sexualidade e classe? E como uma perspectiva política da não-monogamia pode contribuir para a construção de relações que se propõem saudáveis?
Como temos tratado em nossos textos, percebemos a monogamia como uma estrutura de controle e posse. Historicamente, mulher e filhos se somavam as terras e bens materiais do patriarca como suas propriedades. Na Roma Antiga, o poder do Pater¹ era tão grande que nem o Estado interferia em suas decisões no âmbito familiar . As transformações sociais colocaram o casamento e a família em um lugar baseado também na afetividade. Apesar disso, nossa sociedade segue patriarcal e machista. Em 2011, um relatório de Saúde Mental no Mundo, da Organização Mundial da Saúde, indica que mulheres têm maior risco de desenvolver transtornos mentais. As múltiplas tarefas que exercem na sociedade são apontados no relatório como um agravante para essa incidência. Mulheres, muitas delas negras e pobres, nas periferias, além de esposas e mães, são educadoras e cuidadoras, fazendo um trabalho não remunerado e não valorizado, enquanto também se somam as massas de mão de obra essenciais, sendo, em muitos casos a fonte de renda de seus lares.
A violência doméstica e familiar é outra realidade vivida por várias pessoas em nossa sociedade. A Lei Maria da Penha prevê cinco tipos dessa violência, sendo elas: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. As transformações que a estrutura monogâmica passou foram responsáveis por colocar o trabalho doméstico, que por não ser remunerado não é valorizado, como obrigação das mulheres. A não realização desses trabalhos é em muitos lares, responsável por humilhações, constrangimentos e insultos. Através do imaginário de posse do homem sobre a mulher que ainda resiste em nossa sociedade, essas violências são minimizadas por terceiros, como bem expresso no dito popular “em briga de marido e mulher não se mete a colher.” Por conta também da estrutura monogâmica e cultura machista, a violência doméstica sofrida por homens, exercida por seus pais, tios, irmãos, é invisibilizada. Bem como os efeitos nocivos da pressão existente na ideia do homem provedor.
Para a estrutura monogâmica, estar solteiro é um estado transitório, sendo o objetivo encontrar alguém para se constituir família. O advento do mito do amor romântico nos ensina que esse alguém vai suprir todas as nossas necessidades. Somos ensinados a procurar “um príncipe no cavalo branco”, “uma princesa indefesa”, e bombardeados com isso em livros, séries e filmes, que coincidentemente se encerram com a festa de casamento, o “viveram felizes para sempre”, mas na maioria das vezes nunca mostram o que tem para além disso. A própria busca desse amor idealizado já causa sofrimento, e tem como padrão a exclusão de corpos historicamente marginalizados. Para que existam príncipes e princesas, é preciso que existam vassalos, que jamais farão parte da realeza. No conto de fadas monogâmico pessoas não hegemônicas sempre serão esses vassalos. Esse contexto fomenta tanto o preterimento quanto a solidão. A ideia de que o casal é a entidade suprema nascida do amor, atrelada às questões do padrão estético, colocam um grupo de pessoas, essas sabidamente, pessoas não brancas, trans, pobres, como menos desejáveis e num lugar de constante medo de serem substituídas.
Essas normativas existentes na monogamia podem interferir na saúde mental das pessoas, causando por vezes sofrimento psíquico. Podemos tomar como exemplo o ciúme² nas relações monogâmicas. É importante considerar que o ciúme, assim como outras emoções e sentimentos, faz parte do arcabouço de expressões humanas, não sendo, portanto, exclusivo deste tipo de relação. Não obstante, o ciúme dentro da lógica monogâmica atua muitas vezes como instância de controle e expressão de posse das pessoas envolvidas na relação. Dessa forma, o ciúme é legitimado e inclusive estimulado nas dinâmicas relacionais dos casais. Mas há ainda um fator interessante: a percepção sobre pessoas ciumentas muda a depender do gênero. Isso fica explícito nas mais diversas piadas e brincadeiras cujas protagonistas são as mulheres, onde diversos estereótipos negativos impingidos às mulheres são utilizados (neuróticas, descontroladas, etc). Essa concepção desconsidera ou normaliza o sofrimento psíquico causado tanto na pessoa que sente o ciúme, como em quem que é alvo dessa emoção. No caso de grupos historicamente marginais, esse sofrimento pode vir a ser ainda mais intenso, uma vez que pode se misturar a sentimentos pré-existentes, como insegurança, baixa autoestima, medo do abandono, entre outros.
Nas relações não-monogâmicas, não há a valorização do ciúme como expressão de amor. Ele é tido como um sentimento desconfortável, tal como outros, e que precisa ser tratado, no processo individual de cada pessoa. Assim, compreender as “raízes” do ciúme, e em quais sentimentos este pode estar ancorado, é fundamental para que possa ser tratado. A partir dessa construção é possível a pessoa falar de si e transmitir suas necessidades à sua parceria. Ao dizer que o tratamento de sentimentos “negativos” é um processo individual, não significa que essas questões não devam ser discutidas com as pessoas envolvidas na relação. Esse diálogo é fundamental, e é um pressuposto na vivência de relações não-monogâmicas. Entretanto, o compartilhar os sentimentos e necessidades difere completamente de uma tentativa de controlar alguém através da expressão dessas emoções e necessidades.
Destacou-se aqui um exemplo relacionado ao ciúme, mas isso aplica-se a vários sentimentos/emoções que por vezes causam sofrimento às pessoas em geral, mas que ganha contornos específicos nas intersecções de raça, classe, gênero e sexualidade. Expressar à parceria sentimentos e necessidades é fundamental para a construção de uma relação não monogâmica mais próxima do saudável. Infelizmente, devido a opressões estruturais, muitos grupos têm dificuldade em se expressar. O racismo, por exemplo, imprime marcas profundas na subjetividade de pessoas não brancas, dificultando a vivência de toda sorte de experiências afetivas. A objetificação constante tanto de pessoas negras, indígenas, como trans, também contribui para que o repertório para lidar com o trabalho emocional nas relações amorosas seja mais reduzido. Em muitos casos esses grupos de pessoas interpretam que uma relação monogâmica pode oferecer toda a segurança e estabilidade que precisam, uma vez que para muitas, os momentos de solidão são mais extensos que os de companhia. Porém, esta interpretação não corresponde ao real, uma vez que a insegurança e o medo da perda do ser amado permanecerá, provocando ainda mais dor num eventual término, ou ainda mais grave: fazendo com que a pessoa se anule para não perder essa relação mono.
Essas preocupações podem vir a permanecer numa relação não-mono, ainda mais se os metamores corresponderem a algum tipo de padrão hegemônico. Mas uma das oportunidades que a não monogamia oferece é a possibilidade de explorar a vivência de várias afetividades, além do exercício da liberdade e poder de escolha. Além disto, poder perceber que a sua parceria está ao seu lado por desejo, e não devido a uma frágil obrigação de exclusividade.
Por outro lado, pessoas não-mono que se relacionam com membros de grupos marginalizados devem ter em mente que dinâmicas estruturais de opressão atravessam a vida e a visão de mundo das pessoas com quem se relaciona. E que isso afeta a saúde dessas pessoas. Não se trata de ter condescendência, mas empatia com as diversas vivências. Além disso, há de serem observadas por todas as pessoas envolvidas, se eventuais dinâmicas monogâmicas estão sendo trazidas para a relação não monogâmica, e estão contribuindo para o aumento do sofrimento psíquico de pessoas não brancas e pessoas LBTQIA+. Um exemplo é o pressuposto das hierarquias. Estas pessoas constantemente estão abaixo nas hierarquias sociais, sendo este elemento um causador intenso de sofrimento.
Na monogamia a hierarquia está posta, e assim, como já mencionado ela contribui para a exclusão de vários grupos de pessoas das dinâmicas de afeto, visto a necessidade de estabelecimento de relações exclusivas. Na não-monogamia, o viés emancipatório passa justamente por essa característica não exclusiva. Entretanto, se as hierarquias são transpostas para essas relações, pode vir a se observar a repetição de desigualdades estruturais no que diz respeito ao machismo, ao racismo e à LGBTQIA+ fobia. Estas desigualdades podem reforçar sentimentos citados anteriormente, como baixa autoestima, medo do abandono, etc.
O reforço de lógicas de exclusão presentes na lógica monogâmica dentro da não monogamia, pode contribuir para o aumento da dor psíquica em pessoas marginalizadas. Não significa, contudo, que a não monogamia por si só seja a relação “perfeita”, em que corpos marginalizados estejam sempre à vontade, ou que essas relações sejam sempre igualitárias e saudáveis. Para isso, é necessário, um posicionamento anti-machista, anti-racista e anti-LGBTQIfóbico. Todavia, a busca constante de escuta e diálogo em relações não-mono, e a discussão sobre a queda de hierarquias e desconstrução do amor romântico contribui para uma vivência mais saudável na dinâmica de afetos.
Outro ponto que pode vir a afetar a saúde mental de quem vive a não-monogamia é a possível sensação “de solidão” e incompreensão diante de um mundo onde a norma é a monogamia. Não raro, para muitas pessoas não-mono, não é mais possível encontrar escuta e acolhimento genuíno de amigos e familiares para suas questões. Pois, uma vez que a não-monogamia não corresponde à norma, frequentemente as pessoas não mono são colocadas como únicas responsáveis pelos seus infortúnios, pois estariam buscando uma relação anormal. Como se nas relações monogâmicas as pessoas não sofressem tristezas ou desgostos. Por isso, para muitas pessoas não-mono, é interessante e importante a troca de vivências e experiências com pessoas que vivem fora da norma monogâmica. Essa troca oportuniza um fortalecimento pessoal, na medida em que é possível compartilhar problemas e angústias junto às pessoas que vivenciam processos parecidos. Essas medidas podem contribuir para aumentar a autoestima, e a segurança de pessoas não-monogâmicas na afirmação de um posicionamento que é ao mesmo tempo pessoal e político.
Precisamos reforçar também a importância de atendimento psicológico para estes grupos. As feridas que carregamos são inúmeras, e ter a oportunidade de acessar a terapia — seja de qualquer orientação teórica — é importantíssimo para trabalhar as marcas que a desigualdade deixa impressa nos corpos. Uma dica importante é buscar profissionais minimamente sensíveis a estas opressões, entendendo assim como os problemas sociais podem atravessar o corpo e a psiquê daqueles que os vivem. O mesmo se aplica ao trabalho terapêutico de eventuais conflitos ligados à vivência da não monogamia.
Infelizmente, a psicologia e a psiquiatria ainda têm andado vagarosamente no entendimento de que a relação entre desigualdades, exclusão e subjetividades tem importância fundamental no manejo das questões de pacientes na clínica. Contudo, é bom perceber que a inserção dos mesmos corpos marginalizados nestas áreas de conhecimento tem influenciado nas intervenções profissionais no trabalho de terapia e na escuta clínica. Assim sendo, buscar profissionais que tenham avançado nesse sentido, capazes de uma escuta que envolva acolhimento e sem juízos de valor, propicia uma vivência terapêutica agregadora.
Por fim, quando falamos das ferramentas para a desconstrução diária, sempre citamos o diálogo aberto, direto e sincero, a honestidade e a empatia. É uma caminhada que vai ser única para cada pessoa, e o apoio de amores e afetos é essencial para ela. Outros ambientes também agravam a possibilidade de sofrimento psíquico, e por isso é importante dizer que não devemos ter vergonha de buscar grupos, sejam presenciais ou virtuais, que nos auxiliem numa reflexão a respeito da própria condição anti-hegemônica, ou suporte terapêutico. Para corpos historicamente marginalizados e para pessoas que adotam a não monogamia como perspectiva não apenas relacional, mas também política, “cuidar da saúde mental é um ato revolucionário”. Ainda acrescentamos que “sem o questionamento do sofrimento que mutila o cotidiano, a capacidade de autonomia e a subjetividade dos homens, a política, inclusive a revolucionária, torna-se mera abstração e instrumentalização”. Ou seja, cuidar da saúde mental é também cuidar de si enquanto ser político. Romper com a lógica monogâmica é romper com uma cultura cisheteropatriacal e branca. E romper com ela nos dá a oportunidade de se relacionar sem várias expectativas e idealizações. Relações não-mono não são por si só perfeitas, e nem deveriam acreditar ser, por isso a não-monogamia precisa ser política, para que ela não seja cooptada por uma lógica liberal e individualista. E é por esse motivo que debatemos sobre isso no NM em Foco.
¹. Pater familias (plural: patres familias) era o mais elevado estatuto familiar (status familiae) na Roma Antiga, sempre uma posição masculina. O termo é latino e significa, literalmente, “pai de família”. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Pater_familias)
². Importante ressaltar que ao falar de ciúme, as noções aqui são referentes a uma compreensão ocidental, brasileira, visto que há uma diversidade de percepções em diferentes culturas do que vem a ser o ciúme, como descreve Almeida et al (2008).
REFERÊNCIAS:
“Sofrimento psíquico em mulheres brasileiras: uma revisão integrativa.” — Cynara Rodrigues Soares da Silva e demais;
“A evolução do pátrio poder — poder familiar.” — Marília Naldir de Albuquerque Cordeiro;
Instituto Maria da Penha, em: http://www.institutomariadapenha.org.br/
“Negros e negras: cuidar da sua saúde mental é um ato revolucionário.” — Nelson Gentil, em: https://almapreta.com/editorias/o-quilombo/negros-e-negras-cuidar-da-sua-saude-mental-e-um-ato-revolucionario
“O ciúme romântico e os relacionamentos amorosos heterossexuais contemporâneos”. Thiago de Almeida e demais (2008), em: https://www.scielo.br/pdf/epsic/v13n1/10.pdf
O sofrimento ético político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão. Bader Sawaia (2001). In: Artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Bader Sawaia (Org) (2001).
“Manejo Clínico das Repercussões do Racismo entre Mulheres que se “Tornaram Negras”. Jeane Saskya Campos Tavares e Sayuri Miranda de Andrade Kuratani, em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-98932019000100118&script=sci_arttext
Texto por: Marcia Oliveira, Newton Jr, Nana Miranda
Como citar?
OLIVEIRA, M. LIMA JR, N. S. MIRANDA, R. Como uma Não-monogamia Política pode contribuir para uma boa saúde mental. NM em Foco. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/como-uma-nao-monogamia-politica-pode-contribuir-para-uma-boa-saude-mental/. Acesso em: dia, mês, ano.