Contribuições da pensadora Geni Nuñez
O tema do ciúmes é recorrente em debates sobre a não-monogamia. Se por um lado o ciúmes como expressão saudável do amor faz parte de uma lógica monogâmica, por outro, não deixamos magicamente de o sentir ao escolher a não-monogamia. Neste texto compilamos algumas falas da pensadora e referência no pensamento anticolonial Geni Nuñez para nos ajudar a refletir sobre as questões relacionadas ao ciúmes e estratégias para lidar com ele a partir de um pensamento não-mono político.
7 auto perguntas potencialmente terapêuticas para se lembrar em crises de ciúme:
1) Desejo punir (consciente ou inconscientemente) o meu amor por desejar/amar/querer outra pessoa além de mim? Acho que por não desejar apenas a mim tenho o direito de fazer essa pessoa se sentir mal, culpada, suja? De puni-la ao ponto de fazer com que não possa vivenciar com alegria esse/s outro/s amor/es? Se minha coação “der certo”, terá valido a pena? Conseguirei realmente aproveitar um amor que se mantenha comigo às custas de ameaças, chantagens e coerções?
2) “Olha o que acontece comigo, olha como fico mal quando você exerce autonomia de seu próprio corpo”. Porque opto por lidar com minhas inseguranças pela via de mais controle e não pelo caminho de construção da autonomia (minha e alheia)?
3) Em vez de tomar a liberdade afetivo-sexual alheia como critério de ética comigo, por que não me pergunto: meu amor demonstra afeto, acolhimento e cuidado por mim? Se sim, porque estou me centralizando em relações que não são sobre mim?
4) Se o presente, e, mais ainda, o futuro não estão sob meu controle porque me autorizo a dar voz de realidade a expectativas, suposições e anseios? O “e se…” não é.
5) Se minhas fantasias se concretizarem de fato, que poder tenho eu sobre elas? Se a previsão de si mesmo já é incerta, que dirá prever as decisões alheias. Amar também é abrir mão dessa arrogância, além do mais já há muitas tristezas no presente para que sintamos como reais aquelas que sequer aconteceram.
6) Por que estou abrindo tanto meu coração para pensamentos que me machucam? Seria talvez porque imaginando essas situações de modo exagerado eu possa me dar alimento/impulso para ações coercitivas?
7) Cada vida é única e irrepetível, nem consigo mesmo é potente nos compararmos, pois competir contra si é sempre uma perda, uma injustiça com as diferentes estações da nossa vida. Se nem consigo é possível se comparar, porque se colocar como critério de outros corpos e desejos?
Pela construção artesanal dos afetos.
Ciúmes e comparação: acolhendo a máquina do tempo
Ciúme pode ser um nome usado para muitos outros sentimentos. Um deles é a inveja. Muitas vezes ela vem na situação de paixões novas, no contraste em como a pessoa está sendo com o novo amor e como está com o amor antigo.
“Não é mais o mesmo comigo”, dizem. No entanto, apenas a mudança, em si, não necessariamente precisa ser um fator de tristeza. Faz parte do fluxo da vida que os sentimentos se transformem. Também se transformará a paixão que se está vivendo, assim como se transformou a que sentimos. Ao mesmo tempo que “nunca vai voltar” o mesmo sentimento do passado, os de agora também não voltarão, nem os de amanhã se repetirão. Esta é a graça da vida. A serenidade e calmaria também têm sua intensidade. Novamente, se a paixão já sentida não se repetirá, tampouco os novos sentimentos que vivemos. Em vez de uma paixão, temos muitos tipos, de muitas formas. De certa maneira, tudo é novo e igual ao mesmo tempo, no eterno fluxo da vida, que mesmo quando se repete, se repete diferente e mesmo quando é diferente, é o mesmo.
A água aquecida pelo sol evapora, se mistura no ar, se transforma em vapor, aí se formam as nuvens e delas cai a chuva, transbordamento das gotas. Chover de novo jamais será tédio, é magia toda vez que acontece. Não é porque algo se repete que é menos bonito, nem se repete jamais do mesmo jeito. Lembrar disso pode nos ajudar a nos abraçar diante dos fantasmas da autoestima que a todo tempo nos ameaçam com a semelhança ou diferença. Somos infinitamente diferentes e iguais — a hierarquia é a raiz dos males do mundo colonial.
A vida acontecendo é a tecnologia motriz das máquinas do tempo.
Intuição ou obsessão? Cultivando usos saudáveis da imaginação
A obsessão se caracteriza por pensamentos intrusivos, repetitivos, persistentes, aquela sensação de quando nossa cabeça fica “martelada” de uma circularidade de ideias. Muitas vezes ficamos em dúvida se estes pensamentos são reais, se seriam fruto das nossas inseguranças, medos e angústias que vêm preencher as lacunas do que não sabemos ou se de fato não estamos sendo bestas em tentar afastar uma impressão que depois se verifica correta.
Um dos caminhos que tem feito sentido pra mim é o seguinte: esse saber vai resultar em algo positivo para minha saúde? Qual o real valor da coisa que buscamos confirmar? Em que vale a pena usar nosso saber intuitivo, nossa energia de vida? Ex: quando pensamentos intrusivos nos levam a stalkear obsessivamente em busca de respostas é porque a resposta já está dada. Independente das nossas apostas se concretizarem ou não, já deu errado pela precarização da saúde mental que estas ações engendram.
Nossa intuição, nossa imaginação é um poder maravilhoso que deve ser usado sabiamente. Se temos o presente da fantasia, da imaginação, é um sintoma que as usemos apenas para pintar quadros que nos machucam, que nos angustiam. O racismo, a misoginia, a monogamia e afins tentam nos roubar o direito a imaginar coisas saudáveis, tentam nos tirar o direito a usar de modo criativo, lúdico, prazeroso nossa capacidade de imaginar.
A cura do presente também vem da cura do futuro que se imagina. O plantio saudável da nossa imaginação também pode nos levar a um fortalecimento, a um aumento da nossa imunidade para que se/quando situações difíceis vierem a gente possa senti-las de modo não destrutivo.
Ser generoso com o dom da imaginação não é ser trouxa, ser trouxa é usar o poder da intuição para coisas levianas da vida.
Ciúmes e suas complexidades: acolher nossas angústias é abraçar nossa pequenez
Me parece que uma das dores centrais do ciúme vem diante da frustração em perceber que não deu conta de suprir a falta do outro/a. “Como assim eu não sou tudo que você precisa? O que faltou em mim para te completar?”.
Parte dessa dor depende de um narcisismo em achar que realmente é possível dar conta de tapar todos os buracos existenciais de outrem. Então em vez de ser um problema de baixa autoestima, muitas vezes é um sintoma da alta autoestima. Do prazer de fazer com que o outro não sinta mais falta de nada. Há episódios em que realmente a sensação é essa, mas em geral não passam de episódios, em algum momento uma das pessoas vai querer romper a bolha e o rompimento desse pacto é algo que pode gerar um desconforto psicológico imenso para muites.
Agora pensando que há jeitos históricos e emocionalmente diferentes em se lidar com a frustração, sabemos que há marcações profundas pelo gênero, pela raça, pela classe social. Homens cis hétero brancos, por exemplo, costumam usar a violência como ferramenta para lidar com a frustração. O que não quer dizer que mulheres, pessoas LGBT sintam “menos” ciúme, mas muitas vezes reagem a ele de outras formas. Uma delas é a internalização do sofrimento e/ou da expressão dele sem recorrer à violência física. Muitas vezes a solução para o ciúme é prometer o impossível à outra pessoa: que ela realmente irá dar conta de suprir tudo.
Se a frustração e a finitude nos constituem, como lidar com ela de um jeito que não seja destrutivo a nós e aos demais? A pergunta aponta a urgência de criarmos outras formas de nos vincularmos, de amarmos. Há mais de 500 anos a monogamia aqui tem falhado em cumprir as promessas positivas que faz, além disso tem feito parte de um modo relacional produtor de grande sofrimento físico-psíquico.
Não somos tudo pra ninguém, não somos o centro da vida de uma pessoa nem o centro do mundo. Pelo nosso próprio bem, não podemos dar conta de tudo. Reconhecer que somos apenas uma pequena parte é um gesto de autocuidado e generosidade consigo e com os demais. Isso nos ajuda a curar feridas de autoestima, de medos de insuficiências, de culpa, comparação e tantos outros processos.
Ciúmes e acolhimentos anticoloniais: reescrevendo traumas
Quando falamos sobre ciúme é comum que haja uma inversão: a pessoa ciumenta se coloca como vítima e a que “provocou” ciúmes, a vilã. O sofrimento é usado como uma ferramenta de chantagem e coerção: “se você me ama, não me faça sofrer e não me fazer sofrer é seguir minhas vontades”.
Primeiro que sofrimento não é uma garantia ética, até bolsominion sofre quando falam mal do Bolsonaro e é um sofrimento real, mas que não tem base ética. Segundo que culpabilizar as atitudes das mulheres pelas emoções sentidas pelos agressores é justamente a lógica do feminicídio. Mas mesmo em relações entre outros gêneros, a culpa nunca, nunca é de quem sofre a violência.
Não foi a roupa curta, a maquiagem, o beijo ou a paixão que “provocaram” ciúme e sim o sentimento de se autorizar a legislar um corpo que não o próprio. Ciúme não é sinal de amor, não é fofo ou algo do tipo, é um sentimento que, acompanhado de práticas de cerceamentos, é violento.
Pensem em alguém que dá um tapa no rosto de outra pessoa, a dor na mão de quem tapeou que deve ser acolhida ou o rosto de quem sofreu o golpe? Violência psicológica (também) fere. Que o sofrimento de quem sente ciúme seja acolhido, mas jamais na via de culpabilização do comportamento alheio.
Segurança emocional que se constrói por meio de chantagem e cerceamento é uma segurança violenta, frágil e superficial — precisa ser atualizada o tempo todo. Exercer autonomia afetivo-sexual deveria ser um direito de todas as pessoas (especialmente de mulheres, pessoas LGBT e racializadas).
Se ao exercer esse direito você é punido e chantageado emocional e fisicamente, procure ajuda. A cada vez que não fazemos a pessoa que amamos se sentir suja, errada ou culpada por ter exercido o direito à si mesma, a gente reescreve os traumas (nossos e alheios). Com coragem e carinho nossos caminhos avançam no reflorestamento dos afetos.
Geni Nuñez (@genipapos no Instagram) é Guarani, ativista do movimento indígena, pensadora anticolonial, Mestre em Psicologia Social e Doutoranda em Estudos Raciais e de Gênero.
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MUITO OBRIGADA por esse texto, ele foi fonte de um suporte essencial nesse momento de redesenho dos meus padrões comportamentais afetivos, por entender que não se culpabilizar tanto pelas emoções que nos habitam e acolhê-las é fundamental nesse processo de descolonização dos sentimentos também! Projeto incrível.
<3
Sempre recusei o amor por pensar que a invasão dos meus direitos seria uma norma.. fico feliz de saber que estava errada
GENI EU TE AMO
É muito bom poder reler esse texto. Principalmente vindo de uma crise de identidade, autoestima e ciúmes bem forte e que gerou um sofrimento bem incômodo.
Mais do que reconhecer quando está se reproduzindo padrões de comportamentos é conseguir buscar ajuda, apoio e pessoas que viveram e ainda vivem esses dilemas. É muito importante perceber que o que eu sinto diz muito mais sobre mim do que sobre o outro, e essa autoresponsabilidade é essencial pra mudar esses padrões.
A todo momento estamos errando na voz, na expressão, na leitura da relação e na posição que ocupamos, assim criando hierarquias que não condizem com a liberdade. É dificil demais ser nm, mas por mais que doa enfrentar algumas coisas, ainda sim é bem melhor do que se ver na posição de proibidor, inquisidor e ver que o outro só está contigo pela obrigação ou pelo aprisionamento.
As vezes que deixei de me vigiar nesse sentido, o ciúmes brotou e cegou o que eu já havia aprendido. Só quando a angústia ta grande que a gente reconhece que regrediu a pensamentos colonialistas. E lendo esse texto, pela terceira ou quarta vez, resgata o sentimento de alerta e mudança. Obrigado mesmo Geni.