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Em nome da família, amém

Família, conservadorismo e o terror não-monogâmico

A família é tida como sinônimo de amor. Questionar a família torna-se um tabu. As falas relacionadas à família também aparecem de forma recorrente nos discursos conservadores. Discursos em prol da família “tradicional”, dos valores e bons costumes cristãos. Contudo, o questionamento em torno da família enquanto uma instituição de controle não é atual. E aqui cabe nos questionar: pensar em uma Não-monogamia Política é pensar no fim da família? Vamos refletir então sobre como esses discursos conservadores se articulam com o que propomos aqui.

A etimologia de família vem do latim famulus, que significa escravo doméstico. Família seria então o conjunto de escravos domésticos pertencentes e dependentes à chefe. A família Romana do século IV traz uma definição de família que foi usada por diversos códigos modernos como o brasileiro de 1916. Essa definição nos ajuda a entender como se dava essa relação do conceito etimológico. Essa família era composta por mulher, filhos, netos e bisnetos, bem como os respectivos bens, o que incluía os escravos. Todos esses indivíduos estavam sob o jugo do pater familias, o ascendente comum mais idoso.

Dessa forma, a família Romana era uma instituição política, religiosa, econômica e jurídica que se erguia ao redor da figura masculina. Algo que demonstra o poder do pater familias em relação a sua família é o ius vitae ac necis, que seria o direito sobre a vida e sobre a morte de todos os pertencentes a seu grupo familiar. Tal direito demonstra bem como se dava a relação entre esses indivíduos, sendo os outros membros partes dos bens e posses do pater. O próprio Estado Romano não interferia diretamente nas relações familiares, dando ao pater uma jurisdição paralela a do Estado, autorizada pelo Direito Romano.

O advento do cristianismo mudou essas relações familiares. O pater passou a ter sua atuação restringida e o Estado passou a ser mais presente nas relações familiares, trazendo assim uma autonomia maior à mulher e filhos em relação ao pater. Apesar de o regime patriarcal seguir imperando, a presença do Estado se tornou forte através das legislações. Maria Berenice Dias, jurista e advogada, fala de como historicamente a família esteve ligada a uma noção sacralizada e indissolúvel, organizada a partir da lógica patriarcal de maneira matrimonialista, hierarquizada, patrimonialista e heterossexual.

A configuração capitalista da sociedade trouxe transformações à instituição da família. Essa instituição passa por uma latente “despatrimonialização”, tendo um foco nos sujeitos. Com isso, as famílias monogâmicas passaram a ser compostas por núcleos ainda menores. A Revolução Industrial também trouxe uma transformação significativa para a família nuclear no ocidente. Os filhos passaram a ser considerados investimentos para o futuro e, com as idealizações do amor romântico, esse investimento econômico passou a ser considerado investimento afetivo.

J. J. Rousseau, o filósofo e teórico contratualista, também contribuiu para esse amor idealizado e sua relação com a família. Rousseau acreditava que a família seria a mola mestretransformadora da sociedade. No interior da família os indivíduos seriam educados para resgatar o amor puro que os homens seriam capazes de sentir. E o amor conjugal traria a coesão para essa família, que é nuclear e monogâmica. Como abordamos no texto anterior, esse amor idealizado foi cooptado por uma lógica capitalista e consumista e o amor se tornou tema central da busca por felicidade plena. A partir disso, esse amor idealizado passou a fazer parte obrigatória das propagandas, se consolidando no ocidente como a única forma possível de ser verdadeiramente feliz.

No ordenamento jurídico brasileiro, podemos ver desde a Constituição Federal, o lugar de proteção à família. No artigo 226, a Constituição aponta a família como sendo base da sociedade. O Código Civil, no artigo 1.521, prevê um impedimento matrimonial para indivíduos que já são casados. No artigo 1.525 existe a indicação do processo de habilitação para o casamento, sendo necessário apresentar declaração de estado civil, para coibir o casamento entre pessoas já casadas. Já o Código Penal, no artigo 235, apresenta o crime de bigamia, passível de pena  de 2 a 6 anos de reclusão. Ou seja, o Estado reconhece e garante proteção à família nuclear e monogâmica.

Como podemos ver, é uma tese monogamista a que se assume para o direito matrimonial e da família, aqui no Brasil. Vários juristas brasileiros como Orlando Gomes, Santiago Dantas e Washington de Barros Monteiro, apontam a monogamia como um dado da natureza sociológica da nossa sociedade e norma das civilizações cristãs. Esses apontamentos estão apoiados na ideia de que as não-monogamias são um estágio menos avançado de moral. É interessante perceber como esses discursos evolucionistas se entrelaçam no entendimento da monogamia como forma pura e natural de se estabelecer relacionamentos. Esses discursos estão diretamente ligados à moralidade cristã e a maneira como a monogamia foi imposta nessas terras através do projeto de catequização que se deu a partir do marco colonial. Logo, não é de se admirar que as narrativas utilizadas nos discursos conservadores se valham dessa noção da família enquanto instituição sagrada só possível dentro da monogamia cristã.

O conservadorismo tem sido cooptado por diversos movimentos de direita e a partir disso diversas disputas de sentidos tem sido feitas. A intenção é deslegitimar pautas progressistas das minorias sociais, como por exemplo o pânico moral que se é criado em cima das pautas de gênero e sexualidade, apontados na falácia da “ideologia de gênero”. Nesses discursos se soma uma defesa ferrenha da propriedade privada, bem como da família enquanto instituição detentora de uma moral tradicional. Moral essa excludente, totalmente voltada para os indivíduos cisheterossexuais. A família reivindicada por esses indivíduos é a família nuclear monogâmica. Eles atacam inclusive diferentes configurações de família expandida presentes no Brasil, como as famílias monoparentais e as famílias de pessoas LGBT.

É essencial localizar que a família historicamente é essa instituição cisheterocentrada, de proteção da propriedade privada, de controle dos corpos, sobretudo os corpos considerados femininos. É na família que o trabalho doméstico/reprodutivo cumpre seu papel imprescindível ao capitalismo. Esse trabalho é incorporado como dimensão natural nos processos de subjetivação das mulheres, fazendo com que esse trabalho seja executado como tarefa amorosa de cuidado. A antropóloga Gayle Rubin aponta como o amor romântico se torna tecnologia de poder para a extração desse trabalho em prol do capital.

Apesar disso, até mesmo nos movimentos LGBT, temos processos de assimilação dessa lógica de família nuclear monogâmica. angie, travesti não-binária, anarcoqueer e feminista, nos aponta em sua zine “Como pensar como ume queer revoltade”, como o assimilacionismo nos coloca numa posição de “comportades”, de higienizados, de rendidos ao cistema. Mas, apesar de algumes de nós ter a oportunidade de viver assim, a maioria existe apesar desse mundo, contra ele. Para cada conquista individual, para cada casamento homoafetivo, são diversas travestis queimadas e mortas. Casamento para quem? Família de comercial de margarina para quem?

Nós queremos o fim da família? Amanda Palha responde bem essa pergunta em suas falas na mesa: “Família, religião e política”, do Seminário Internacional “Democracia em colapso?”. Ela nos convida a refletir como a retórica da direita conservadora aponta como ameaça aquilo que se propõe a questionar a normatividade do sexo, do desejo, da família. Nos aponta como as estratégias de abrandar os discursos contra a família não funcionam. Que esse abrandamento, em vez de questionar de fato essa instituição, faz com que os movimentos fiquem retraídos em tudo o que diz respeito à família. Estratégias antissistêmicas são incômodas de fato. Essa radicalidade é necessária em nossos discursos e articulações políticas.

Falar do fim da família não é falar do fim do amor, do fim do afeto. Como Amanda Palha diz, essas vinculações de afeto, de apoio mútuo, não são família. Nosso foco segue sendo a coletividade, as comunidades, o autocuidado. É essencial questionar a instituição família e a que ela serve, desde seu surgimento, até os dias de hoje. Existem possibilidades mil para além das lógicas de controle, posse e cerceamento de autonomia da estrutura monogâmica. A ancestralidade sempre apontou esse caminho coletivo, que se constitui em oposição às lógicas hierárquicas e nuclear da monogamia. A maneira como as direitas através de seus discursos conservadores se utilizam facilmente dessa instituição família, deve ser para nós um sinal de alerta para o que ela representa.

Não-monogamia Política é um direcionamento ético-político na construção de relações autônomas e saudáveis. Um pensamento que se constitui na busca por emancipação coletiva. Construímos o futuro no agora, através das nossas vivências práticas e articulações teórico-políticas. Sendo assim, é necessário se questionar: e como pensar a família a partir da Não-monogamia Política? Como pensar parentalidades possíveis? Quais obstáculos e desafios surgem no dia-a-dia? Como pensar nas implicações da insegurança jurídica que pessoas não-mono têm num país cujo ordenamento jurídico se guia por uma tese monogamista? Todas essas questões nos são imprescindíveis e pretendemos abordá-las em nosso próximo texto.

Referências:

“A origem da Família, do Estado e da Propriedade Privada” – Friedrich Engels;

“Abaixo a Família Monogâmica” – Sérgio Lessa;

“As inovações constitucionais no Direito de Família” – Simone Clós Cesar Ribeiro

“Como pensar como ume queer revoltade” – angie. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/zine-como-pensar-como-ume-queer-revoltade/;

“Da superação da família como princípio estruturante do estatuto jurídico da família” – Marcos Alves da Silva;

“Em defesa das famílias? Bolsonarismo, pânico moral e o protagonismo da categoria família nas eleições de 2018” – Elias Santos Serejo;

“O conceito de família: origem e evolução”- Christiane Torres de Azevedo. Disponível em: https://ibdfam.org.br/index.php/artigos/1610/O+conceito+de+fam%C3%ADlia:+origem+e+evolu%C3%A7%C3%A3o;

“O movimento LGBT e o fim da família” – Amanda Palha. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mIi2tFYbGmc;

“O Tráfico de Mulheres” – Gayle Rubin;

Uma discussão sobre o ideal de amor romântico na atualidade: do Romantismo aos Padrões de cultura de Massas – Maria Thereza Toledo.

Texto por: Newton Jr.
Revisão: Nana Miranda, Alef Santana

Como citar?

LIMA JR, N. S. Em nome da família, amém. NM em Foco. 2021. Disponível em: <https://naomonoemfoco.com.br/em-nome-da-familia-amem>. Acesso em: dia, mês, ano.

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