Reflexões de uma não-monogamia para além dos discursos cis-heteronormativos
A família monogâmica é uma das células básicas da cisnormatividade. O ideal de família é pautado na cisgeneridade, heterossexualidade, reprodução e monogamia. A existência de pessoas trans desestabiliza a família, justamente pelo desencaixe. Não é à toa que muitas são afastadas ou expulsas do convívio familiar. Porém, para sobreviver, pessoas trans historicamente tem formado redes de apoio e afeto que divergem da família tradicional. Uma das divergências fundamentais é que a centralidade dos laços raramente está no casamento e na hereditariedade, mas sim no reconhecimento entre pessoas de uma mesma comunidade.
Como era de se esperar, essas formas de construção de afetos que fogem da monogamia não são de interesse da cisgeneridade. Redes de apoio que não dependem de pessoas cisgêneras (seja diretamente ou através de seu aval), ameaçam o poder da cisnormatividade. Para ela, é importante que todas as pessoas trans acreditem que a única forma de ser feliz é participando dos mesmos mecanismos que geram o seu sofrimento. Não é inusitado, portanto, que a cisgeneridade trabalhe ativamente para desmantelar a comunidade, as redes e os laços de apoio e afeto entre pessoas trans. Isso acontece tanto de forma direta, através da violência e da marginalização, quanto de forma indireta, através do apagamento e da invalidação das redes de afeto que pessoas trans temos construído ao longo do tempo.
A “família trans” só é valorizada quando se assemelha o máximo possível aos moldes da monogamia cisgênera. Situações de pessoas trans que conseguem se casar por vias legais, de casais de pessoas trans que esperam uma criança ou de pessoas transmasculinas que engravidam do marido cisgênero são largamente divulgadas pela mídia cisgênera, que quer nos fazer acreditar que, sim, existe um lugar para nós na monogamia. E aqui não queremos dizer, de nenhuma forma, que pessoas trans que vivem essas situações são responsáveis pela monogamia ou pela cisnormatividade. Mas, justamente chamar a atenção para a forma como a cisgeneridade edita nossas narrativas, como escolhe quais formas de família são válidas e quais não são. Ao contrário do que a cisgeneridade quer nos convencer, “famílias” de pessoas trans existem há muito tempo, o que acontece é que elas não se desenvolvem a partir da monogamia nem da centralidade de um casal.
O discurso sobre a solidão de pessoas trans muitas vezes é centrado em relacionamentos românticos. Essa hierarquia dos afetos, imposta pela monogamia, atinge pessoas trans de uma forma muito perversa e específica. Se pras pessoas cis hegemônicas a centralidade do amor romântico nas relações comumente fragiliza redes de apoio e afetos, para nós pessoas trans ainda tem o fator de nos afastar das nossas próprias comunidades.
Um exemplo extremo disso são as autointituladas “mulheres de homens-trans”. Trata-se de um grupo de mulheres cisgêneras que se relacionam com pessoas transmasculinas e vêem aí uma espécie de identidade que lhes concede o papel de grandes salvadoras dos transgêneros solitários. Além da defesa desse salvacionismo já ser, por si só, problemática, essas mulheres buscam legislar sobre a comunidade transmasculina, reproduzindo uma série de ideias transfóbicas que enxergam os homens-trans como cópias mal-feitas de homens cis. A maior perversidade, entretanto, é que, por reforçarem a centralidade do casal e a monogamia como única possibilidade de amor que uma pessoa trans pode ter, elas separam ativamente as pessoas transmasculinas de sua própria comunidade. Se nenhum afeto tem valor além daquele entre pessoas monogâmicas, logo, seus parceiros nunca poderão criar laços profundos com outras pessoas além delas, nem mesmo (ou muito menos) com outros homens-trans, tornando-os eternamente dependentes e cerceados pelo seu “amor” cisgênero.
De uma perspectiva não-monogâmica e não pautada no amor romântico, relações “Transcentradas” não são relações mono entre duas pessoas trans, simplesmente, mas sim, relações em redes de pessoas trans: amizades, trabalho, amores, dia-a-dia, referências, parcerias. O aspecto romântico é um em muitos outros aspectos de nossa vida e reduzir nossas relações a ele causa uma carência sócio-afetiva imensa e muitas vezes, relações abusivas de dependência.
Ainda que os discursos sobre não-monogamia sejam diversos, corpos historicamente marginalizados seguem sendo ignorados dentro dos debates sobre esse tema. Para um projeto político emancipatório da não-monogamia, é necessário que rompamos também com a cis-heteronormatividade. Para isso precisamos falar como a estrutura monogâmica afeta pessoas trans e como uma Não-monogamia Política pode auxiliar na construção de relações saudáveis e autônomas.
Texto por Helen Maria, Lui Castanho, Nana Miranda, Newton Jr e Simone Bispo. Helen Maria é travesti, Não mono, escritora, artista circense na @Ciafundomundo e idealizadora do Podcast Genericamente, um programa aonde ela conversa com pessoas trans sobre assuntos diversos, como “música com objetos, RAP, gêneros literários”, e muito mais. Siga o perfil para acompanhar o lançamento em breve. Lui Castanho é roteirista, ator e circense. Faz parte da Cia Fundo Mundo — grupo circense formado exclusivamente por pessoas trans, travestis e não-binárias — e atualmente trabalha no desenvolvimento de um longa-metragem com Dê Kelm, através da Haver Filmes. Em seu trabalho artístico, busca desenvolver os temas que lhe tocam, especialmente transmasculinidades, não-monogamia, pornografia e BDSM. Site: http://www.luicastanho.com Facebook: Lui Castanho
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