Diálogos sobre o impacto da estrutura monogâmica na saúde sexual.
Um dos marcadores da estrutura monogâmica é uma sensação de segurança em relações consideradas estáveis. Essa sensação leva as pessoas envolvidas a acreditarem em um controle de situações que não tem, ou seja, é uma falsa sensação de segurança. Um exemplo é a ideia de ser possível controlar por quem nos apaixonamos ou um controle a ponto de sentir desejos apenas por uma pessoa, a que estamos nos relacionando monogamicamente. Um prejuízo dessa crença é a ideia de que relações monogâmicas são um método de prevenção de ISTs.
O imaginário coletivo de uma sociedade cis-heteropatriarcal estruturada na monogamia é de que relações monogâmicas são livres de ISTs e que a prevenção só é necessária para pessoas em comportamentos considerados de risco. O julgamento moral coloca nesses comportamentos pessoas consideradas promíscuas como trabalhadoras sexuais e pessoas LGBT por exemplo. Apesar do trabalho de visibilidade para a necessidade da atenção à saúde reprodutiva e sexual, cerca de 12 milhões de ISTs são diagnosticadas por ano, aqui no Brasil, segundo a OMS. Esses números levam em consideração os casos notificados, já que muitas pessoas não procuram tratamento. Em relação às ISTs, o HIV, que é uma das mais preocupantes, apresenta seu maior crescimento entre homens e mulheres heterossexuais, incluindo os que estão em uniões estáveis e casamento.
Dados recentes com relação à transmissão do HIV da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde revelam que, em 2018, a principal via de transmissão do vírus foi sexual e a proporção de novos casos foi parecida entre homens que fazem sexo com outros homens (40,3%) e pessoas heterossexuais (38,7%). Apesar disso, o estigma sobre as práticas sexuais não-normativas ainda é bastante presente e o vídeo com declarações da pastora Ana Paula Valadão, gravado em 2016 mas repercutido nas últimas semanas, sinaliza bastante isso. Ela chega a afirmar que a homossexualidade “não é normal”, que o a AIDS está aí “para mostrar que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte e contamina as mulheres” e que “o único sexo seguro é a aliança do casamento”, este monogâmico e cis-heteronormativo.
Por conta desse imaginário, muitos casais tendem a considerar a busca por informações sobre saúde sexual e prevenção como um atestado de práticas extraconjugais. De forma geral as responsabilidades sobre o uso de preservativos são tidas como femininas. Mesmo nesses casos, algumas mulheres tem receio de pedir pelo uso do preservativo por medo de perder o parceiro ou de uma reação violenta pela interpretação de que o pedido tem a ver com uma falta de confiança e/ou uma possível infidelidade. Essas situações estão atreladas diretamente a estrutura monogâmica, na sua construção patriarcal, que centraliza o poder no homem, bem como no sentimento de posse e controle do outro.
Na população negra, os indicadores de saúde revelam desigualdades. Mulheres negras comumente se encontram na interseccionalidade das opressões de gênero, raça e classe. Os coeficientes relacionados à cor/raça, apresentam maior razão de mortalidade materna, e também são maiores causadores de violência física das mulheres negras durante a gravidez. Em relação às adolescentes, estas apresentam uma posição frágil em relação a negociação de práticas sexuais seguras. São também vítimas recorrentes de violências sexuais e exploração sexual. A persistência indevida em exigir o acompanhamento dos responsáveis no atendimento em serviços de saúde é mais uma barreira para que essas adolescentes tenham acesso a tratamento e prevenção. Sendo assim a discriminação racial, as violências de gênero e a pobreza localiza essas mulheres e adolecentes negras em contextos socias que potencializam suas vulnerabilidades a ISTs/AIDS.
Apesar de uma preocupação com o uso do preservativo, muitos homens que fazem sexo com homens relatam situações em que não o utilizam por diversos fatores. O uso de preservativos por vezes é relatado com angústia por uma possível perda de ereção que significaria ausência da virilidade e potência sexual esperada de um homem. Essa visão é inclusive compartilhada por homens não necessariamente homossexuais. Outros relatos mostram uma ideia de que homens têm naturalmente mais desejos e necessidades sexuais colocando relações de homens com homens como mais “livres”, por associarem a mulheres uma ideia de controle nesse sentido. Em algumas situações existe a assimilação e reprodução dessas normas sociais na relação “ativo” x “passivo” que tem a ver com papéis e estereótipos de gênero, e nas relações monogâmicas, da ideia de “provedor X cuidador do lar”, “proprietário X posse”, etc.
Persiste hoje, apesar dos avanços e conquistas, um imaginário que dificulta os esforços para o acesso a serviços de saúde sexual para pessoas LGBT. Existe uma grande defasagem no conhecimento sobre as ISTs e o modo de transmissão. Há também a questão do conhecimento e uso do preservativo. As estratégias de educação sexual são constantemente cis-heterocentradas, o que contribui para essa falta de informação entre jovens LGBT. Mas não podemos reduzir essa questão apenas a falta de informação. A construção da sociedade é cis-heteropatriacal e vê apenas relações entre pessoas cishetero como legítimas. Isso faz com que persista um caráter cis-heteronormativo nas ações de prevenção que leva a ausência de cuidados específicos que estão relacionados a preconceitos e discriminações ligadas à sexualidade, bem como raça e classe.
Mulheres que se relacionam com mulheres sofrem com uma invisibilização ao acessar serviços de saúde. Vários relatos expõem a falta de preparo de muitos profissionais ao lidarem com essas mulheres, assumindo sua heterossexualidade e conversando apenas sobre gravidez indesejada, por exemplo. Essas experiências em muitos casos afastam as mulheres dos serviços de saúde, bem como em outros casos o ocultamento da sexualidade para evitarem passar por situações de constrangimento. O pensamento de que existem menos riscos de ISTs em relações entre mulheres acaba por hierarquizar o que é mais e menos importante impactando também o que deve ser abordado em campanhas nacionais de prevenção. Isso demonstra outro aspecto que potencializa a vulnerabilidade dessas mulheres, como já mencionado, que é a discriminação baseada na sexualidade.
Alguns estudos constatam que em países como Brasil, muitos profissionais da na área de saúde sexual e sexualidade, atuam de acordo com seus princípios crenças pessoais. Num país cis-heteropatriarcal, isso corrobora para essas dificuldades de acesso a serviços por pessoas LGBT, mas também demonstra como a monogamia estrutural dificulta a criação de estratégias de tratamento e prevenção de ISTs/HIV por pessoas em relações não-monogâmicas. Estigmas sociais associam essas relações a um comportamento de risco “promíscuo”, e em contrapartida, como no exemplo das declarações da pastora Ana Paula Valadão, as relações monogâmicas e a fidelidade seriam métodos “naturais” de prevenção.
Relações não-mono não são sinônimo de múltiplos parceiros mas muitas relações não-mono são relações múltiplas. É importante então o trabalho por estratégias de prevenção para a pessoas envolvidas, através de um diálogo responsável sobre o tema, rompa com os tabus dessa busca. Porém o pensamento político da não-monogamia também precisa estar interligado a compreensão de todas essas questões sobre tratamento e prevenção, de como o acesso a isso é atravessado por marcadores de raça, gênero, sexualidade e classe. De como para algumas pessoas esse acesso é dificultado. As parcerias que usufruem de privilégios ligados à raça, gênero e classe social podem se utilizar disso para auxiliar as outras pessoas envolvidas na busca por tratamento e prevenção adequados.
Nesse sentido é importante salientar que as políticas atuais de prevenção ao HIV e outras IST’s não se encerram no uso de preservativos. Nos últimos anos, tem se incorporados outros métodos de prevenção que combinados podem reduzir o risco de infecção, dado que uso da camisinha tem seus limites e não é linear. A “Prevenção Combinada” consiste no uso de várias estratégias conforme o contexto de vida de cada pessoa, ou seja, baseia-se na autonomia e no diálogo e não na prescrição totalmente verticalizada de profissional da saúde em relação às pessoas. Sendo assim, uso de preservativos vaginais, penianos e gel lubrificante; testagem regular para HIV, sífilis e hepatites; tratamento das IST; profilaxia pós-exposição (PEP)[1]; profilaxia pré-exposição (PrEP)[2]; imunização para HPV e Hepatites A e B; redução de danos ao álcool e outras drogas; prevenção da transmissão vertical do HIV da pessoa gestante na gestação, parto ou amamentação e tratamento das pessoas vivendo com HIV (PVHIV) compõem o rol de estratégias da prevenção combinada.
Mas como assim tratamento de pessoas vivendo com HIV também é uma forma de prevenção? Sim, é. O tratamento com uso de antirretrovirais, além do benefício primário de poder dar maior qualidade de vida, pode reduzir a carga viral a um nível de indetectabilidade. E, segundo evidências científicas, pessoas vivendo com HIV que possuem carga viral indetectável há mais de seis meses não transmitem o vírus. Sendo assim, é urgente que as políticas de prevenção não sejam cis-heterocentradas e por consquência monogâmicas e que possamos encontrar e visibilizar profissionais da área com conhecimento do assunto e que colaborem para boas estratégias de prevenção para pessoas não-mono.
[1] PEP (Profilaxia Pós-Exposição de Risco):
A PEP é uma medida de prevenção de urgência à infecção pelo HIV, hepatites virais e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST), que consiste no uso de medicamentos para reduzir o risco de adquirir essas infecções. Deve ser utilizada após qualquer situação em que exista risco de contágio, tais como:
- Violência sexual;
- Relação sexual desprotegida (sem o uso de camisinha ou com rompimento da camisinha);
- Acidente ocupacional (com instrumentos perfurocortantes ou contato direto com material biológico).
A PEP é uma tecnologia inserida no conjunto de estratégias da Prevenção Combinada, cujo principal objetivo é ampliar as formas de intervenção para atender às necessidades e possibilidades de cada pessoa e evitar novas infecções pelo HIV, hepatites virais e outras IST.
Como funciona a PEP para o HIV?
Como profilaxia para o risco de infecção para o HIV, a PEP consiste no uso de medicamentos antirretrovirais para reduzir o risco de infecção em situações de exposição ao vírus.
Trata-se de uma urgência médica, que deve ser iniciada o mais rápido possível — preferencialmente nas primeiras duas horas após a exposição e no máximo em até 72 horas. A duração da PEP é de 28 dias e a pessoa deve ser acompanhada pela equipe de saúde.
Recomenda-se avaliar todo paciente com exposição sexual de risco ao HIV para um eventual episódio de infecção aguda pelos vírus das hepatites A, B e C.
Onde encontrar a PEP?
A PEP é oferecida gratuitamente pelo SUS.
Fonte: http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/prevencao-combinada/pep-profilaxia-pos-exposicao-ao-hiv
[2] PrEP (Profilaxia Pré-exposição)
A PrEP ao HIV é um novo método de prevenção à infecção pelo HIV. A PrEP consiste na tomada diária de um comprimido que impede que o vírus causador da aids infecte o organismo, antes de a pessoa ter contato com o vírus.
Como a PrEP funciona?
A PrEP é a combinação de dois medicamentos (tenofovir + entricitabina) que bloqueiam alguns “caminhos” que o HIV usa para infectar seu organismo. Se você tomar PrEP diariamente, a medicação pode impedir que o HIV se estabeleça e se espalhe em seu corpo.
Mas ATENÇÃO: a PrEP só tem efeito se você tomar os comprimidos todos os dias. Caso contrário, pode não haver concentração suficiente do medicamento em sua corrente sanguínea para bloquear o vírus.
Em quanto tempo a PrEP começa a fazer efeito?
Após 7 dias de uso para relação anal e 20 dias de uso para relação vaginal.
IMPORTANTE: a PrEP não protege de outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (tais como sífilis, clamídia e gonorreia) e, portanto, deve ser combinada com outras formas de prevenção, como a camisinha.
Quem pode usar a PrEP?
Você deve considerar usar PrEP se:
Fizer parte de uma dessas populações-chave:
• Gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH);
• Pessoas trans;
• Trabalhadores(as) do sexo.
E, além disso, se você:
• Frequentemente deixa de usar camisinha em suas relações sexuais (anais ou vaginais);
• Tem relações sexuais, sem camisinha, com alguém que seja HIV positivo e que não esteja em tratamento;
• Faz uso repetido de PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV);
• Apresenta episódios frequentes de Infecções Sexualmente Transmissíveis.
Como posso começar a usar a PrEP?
Procure um profissional de saúde e informe-se para saber se você tem indicação para PrEP. Na PrEP, você deve tomar o medicamento todos os dias, fazer exames regulares e buscar sua medicação gratuitamente a cada três meses.
Fonte: http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/prevencao-combinada/profilaxia-pre-exposicao-prep
Referências:
“Interseccionalidade de Gênero, Classe e Raça e Vulnerabilidade de Adolescentes Negras às DST/aids”. Stella R. Taquette
“Vivência de Mulheres com diagnóstico de Doença Sexualmente Transmissível — DST”. Maria Alix Leite Araújo, Cláudia Bastos da Silveira.
“A percepção de mulheres quanto à vulnerabilidade feminina para contrair DST/HIV”. Carla Marins Silva, Octavio Muniz da Costa Vargens .
“DST no âmbito da relação estável: Análise cultural com base na perspectiva da mulher”. Leilane Barbosa de Sousa, Maria Grasiela Teixeira Barroso.
“Sentidos atribuídos aos cuidados de saúde e à prevenção de DST/Aids em específico por jovens gays”. Rosane Berlinsk Brito e Cunha, Romeu Gomes.
“Uma pesquisa-intervenção sobre prevenção às ISTs/HIV com mulheres lésbicas e bissexuais”. Monique Cristina Henares Batista, Gustavo Zambenedetti.
“População LGBT e o direito à saúde: Estratégias Decoloniais da militância Trans junto à prevenção combinada das ISTs/HIV/AIDS e desigualdades no acesso às políticas públicas na 12º jornada LGBT de PSICO-PI”. Glauber Bezerra Macedo e demais.
“Boletim Epidemiológico HIV/Aids, 2019”. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde.
“Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), 2020”. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde.
Texto por: Isaac Linhares e Newton Jr.
Revisado por: Camila Freitas, Nana Miranda e Simone Bispo
Como citar?
Como citar: OLIVEIRA, I.L.; LIMA JR, N. S. Não-monogamia Política, saúde sexual e prevenção a ISTs. NM em Foco. 2020. Disponível em:https://naomonoemfoco.com.br/nao-monogamia-politica-saude-sexual-e-prevenco-a-ists/. Acesso em: dia, mês, ano.
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